Começamos a vida tendo de abdicar do conforto e da segurança do ventre materno e seguimos acumulando perdas ao longo dos anos, umas mais acachapantes que outras justamente porque irreversíveis. Esses instantes muito particulares de dor, de angústia, de solidão de cada homem sobre a face da Terra fazem-no mais senhor de si, mais conhecedor de sua alma e da força inexpugnável que há nela, e é nisso que nos irmanamos: todos temos episódios dos quais preferíamos não nos lembrar, mas que nos ressoam pelo pensamento, indiferentes a nossa agonia, por maior que nos pareça, e que se cristalizam como as memórias indeléveis que ansiamos por matar, mas que se tornam ainda mais fortes todas as vezes em que ousamos tocá-las. O jeito mais certo quanto a vencer a tristeza fundamental da existência é admirá-la sob a exata medida de reverência, mantendo uma distância segura, mas perto o bastante para notá-la em todos os seus pormenores, entendendo — ou fingindo — que suportar a mágoa é a primeira etapa a ser vencida para se enterrá-la de vez. Mas não existe nenhuma garantia de que virão as outras, nem quando.
Isaac Florentine reforça essa ideia sempre que possível em “Acts of Vengeance” (2017), colocando na boca de um protagonista que experimenta as maiores provações a que alguém poderia se expor tiradas a um tempo melancólicas e bem-humoradas, ainda que também saiba preservar os tantos silêncios de sua história, ladeados pela ação de lutas meticulosamente coreografadas, e imprescindíveis para se apreciar a dimensão de sua amargura. Para tanto, o diretor recorre até as grandes personalidades do mundo antigo. Homem da guerra, o imperador romano Marco Aurélio (121-180), destacou-se também na filosofia, se tornando um dos mais celebrados pensadores do estoicismo, corrente filosófica conhecida por cultuar o desprezo às emoções, inclusive às que remetem ao prazer. O roteiro de Matt Venne distribui ao longo da trama passagens de “Meditações”, compilado de notas do soberano da Roma ancestral sobre a vida, a guerra, a sorte, o destino, alerta para o que será exposto sobre um personagem cheio de nuanças.
Não é todo mundo que admite Antonio Banderas como o justiceiro ávido por sua revanche depois de perder a mulher e a filha, assassinadas de maneira brutal e misteriosa. Na verdade, à primeira vista, parece mais que Banderas aceitara o desafio ou tomado por uma das variações da famigerada crise da meia-idade, especialmente nefasta para o homem, que leva machos de origens diversas a se submeterem a todo gênero de ridículo na tentativa de burlar a ideia do envelhecimento, ou receoso por não encontrar mais a oportunidade preciosa de encabeçar os filmes de Pedro Almodóvar, de quem se tornara o ator-fetiche — Banderas e Almodóvar voltaram às boas definitivamente no monumental “Dor e Glória” (2019), o primeiro como alter ego do segundo. Aqui, além de embolsar um belo cachê, Banderas prova que ainda tem muita lenha para queimar, mesmo depois de um ataque cardíaco recente.
O Frank Valera a que o espanhol dá vida é um advogado sem muita perspectiva depois da grande tragédia pessoal que o vai torturar até a eternidade. Nisso não há nada de muito novo, e Banderas se sai tão bem que pode-se supor que “Acts of Vengeance” fora pensado sob medida para ele, o típico filme de ator, capaz de reacender o interesse do público por seu trabalho. Florentine assinala de maneira bastante nítida a passagem do primeiro ato, momento em que Valera está completamente perdido, entregando-se a doses intermináveis de tequila e deixando-se espancar em clubes de luta clandestinos, para o próximo, em que se enuncia a guinada do personagem. É aí que entra em cena o oficial Hank Strode, intervenção de Karl Urban tão excepcional que faz sombra ao protagonista; não por acaso é Strode a quem cabe encarnar a revelação do grande mistério do enredo, uma trama de ódios cozinhados em fogo brando.
Filme: Acts of Vengeance
Direção: Isaac Florentine
Ano: 2017
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10