Quem tem medo de Simone de Beauvoir?

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.” (Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo)

Na década de 1960, a proposição de Simone de Beauvoir contribuiu para estruturar um movimento social que teve como marca:

a) ação do Poder Judiciário para criminalizar a violência sexual
b) pressão do Poder Legislativo para impedir a dupla jornada de trabalho
c) organização de protestos púbicos para garantir a igualdade de gênero
d) oposição de grupos religiosos para impedir os casamentos homoafetivos
e) estabelecimento de políticas governamentais para promover ações afirmativas.

Copiei e colei a famigerada questão do Enem aqui porque posso apostar que você cristalizou sua opinião sem lê-la. Se você é “esquerdóide”, apoiou, se é “direitóide”, criticou duramente. Como os incomodados gritam mais alto, o saldo foi positivo para as críticas. Eu sou esquerdóide, e apoiei sem ler. Mas aí achei mais prudente me informar.

Sinceramente, do fundo de seu coração, leia desapaixonadamente e me diga: compensa a gritaria? Trata-se de uma questão, pra começo de conversa, constrangedoramente fácil. O examinador, sem usar a palavra “feminismo”, quer chamar a atenção do aluno para o movimento, por meio de uma de suas defensoras históricas. Não sei em que parte da prova saiu, mas não me parece ser mais do que isso — uma questão de história.

Na verdade, o que os examinadores fizeram foi facilitar a vida dos candidatos quanto ao tema da redação. Junte essa questão com a de número 26:

“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que um deles possa com base nela reclamar algum benefício a que outro não possa igualmente aspirar.” (Thomas Hobbes, Leviatã)

Pronto, você tem, de bandeja, a estrutura para sua dissertação sobre violência contra a mulher. Se todos somos iguais por natureza (Hobbes), o que nos diferencia é a forma que tomamos no seio da sociedade (Beauvoir). Não há justificativa para, nessa diferenciação, haver privilégios para uns e preconceitos para outros (sim, é claro que isso vale para outras coisas, como cor de pele, por exemplo). “Ser mulher” hoje, ainda significa, a despeito do movimento feminista datar do século passado, “valer menos”. Cujas consequências são receber menor remuneração executando o mesmo trabalho, ser vista como objeto de uso livre, incluindo aí uso de violência no caso do “objeto” se rebelar, ser preterida em promoções e cargos de chefia, etc.

Caso o aluno pudesse sacar o filósofo John Rawls da cartola, poderia propor como solução (ainda que abstrata) o “véu da ignorância”. Faríamos, todos, o exercício de nos imaginar fora do mundo, e sem saber como e onde nasceremos. Podemos nascer com pele negra, mulher, no interior de um país africano; homem branco de olhos azuis numa família de Park Avenue, com uma doença degenerativa grave, burro, inteligente, homossexual, talentoso, medíocre, esquerdóide, direitóide, etc. Enfim, abstraímos, colocamos o véu da ignorância quanto à loteria social e biológica que nos coloca no mundo da vida, e com isso não desejaremos nem apoiaremos regras injustas.

Enquanto isso não acontece, já será satisfatório ler com calma qualquer coisa antes de cristalizar uma opinião.

Flávio Paranhos

Filósofo e médico.