É um movimento quase orgânico. Quando ficções literárias se popularizam, ultrapassam as fronteiras de lombadas e bibliotecas. Espraiam-se por telas de televisão e cinema, palcos de teatros e cultura pop. Somente na literatura clássica gótica, posso citar “Drácula”, “Frankenstein” e “O Médico e o Monstro”.
“O Retrato de Dorian Gray” também se alinha ao clubinho. Provável que alguns cinéfilos, sem ter lido sequer uma linha do livro, já conheçam os comentários sórdidos e jocosos do aristocrata Henry Wotton, interpretado por um impecável George Sanders, na adaptação de 1945. Ou, ao iniciar a leitura, idealizem um Dorian com as feições de Ben Barnes no longa de 2009 e tropecem num literária e literalmente oposto: de olhos azuis, cachos dourados e maçãs do rosto rosadas. Talvez mais parecido com a versão de Peter Firth, na série da BBC de 1976.
Acontece que o impacto cultural dessa história de hedonismo irrefreável, que se afunila num final dramático, conseguiu transpor até as divisas da sétima arte. Digamos que avançou sobre o castelo imaginário da ficção. E digamos que parte dos fantásticos blocos de pedra tenham resvalado sobre seu criador: o espirituoso e extravagante
dramaturgo, poeta e ensaísta irlandês, Oscar Wilde. Não, Dorian Gray não escapuliu para o mundo com seu retrato de sorriso cruel a tiracolo — embora seja possível admitir que seus delírios de perfeição e juventude visitem, com assiduidade, as superlotadas clínicas de estética do século 21 — mas deu uma causada.
O ano era 1890. Quando a primeira versão do único romance de Wilde foi publicada, ele já gozava de certa fama e prestígio como dramaturgo. Tanto que a história foi impressa, simultaneamente, nos Estados Unidos e na Inglaterra, pela revista “Lippincott’s”. Embora os editores da revista tenham abrandado o original, isso não bastou para evitar as críticas da imprensa britânica à época: “literatura leprosa”, “suja”, “desonrosa”, “obra venenosa”, “cuja atmosfera está carregada dos odores mefíticos da putrefação moral e espiritual”.
Em 1891, é publicada a versão ampliada e censurada, em formato de livro. Nesta edição, que se popularizou, Wilde “diluiu” o conteúdo sexual da primeira (aquela da Lippincott’s). Cuidou, também, de incluir o famoso prefácio/manifesto, cujos aforismos refletiam suas inclinações ao movimento esteticista, e ainda serviam como resposta às reações do público.
Rogo para que leitores menos atentos não ignorem o tal prefácio. Contém, dentre outras, frases potentes e oportunas até para 2022: “Não existe um livro moral ou imoral. Os livros são bem escritos ou mal escritos. Isso é tudo”.
“O vício e a virtude são para o artista matéria-prima para uma arte.” “É o espectador, e não a vida, que a arte de fato espelha.” “A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que ela é nova, complexa e vital.” “Toda arte é bem inútil.”
Algumas bem que poderiam ecoar dos confins do século 19 aos ouvidos de influenciadores digitais millennials. Quem sabe assim perceberiam que “não, não é preciso torcer o nariz para aquele romance do cachalote branco”.
Mas, afinal, por que “O retrato de Dorian Gray” recebeu adjetivações nada elogiosas dos seus contemporâneos?
É preciso contextualizar. Ele foi escrito e levado ao prelo durante o império da rainha Vitória do Reino Unido (1837-1901). Ou seja, num período em que a sociedade britânica agasalhava com corpo, alma, repressão e vigilância, a “moral burguesa vitoriana”. Havia, nessa conjuntura histórica, a persecução de rígidos códigos morais e preceitos cristãos, e o controle dos comportamentos sociais, sobretudo, sexuais.
Dada essa atmosfera intolerante, o conteúdo homoerótico subjacente entre os três personagens principais da trama – o jovem Dorian Gray, o cínico lorde Henry Wotton e o apaixonado pintor Basil Hallward —, fatalmente ofenderia os bedéis vitorianos, reduzindo a cinzas a beleza e complexidade da narrativa, que se desnuda em múltiplas camadas filosóficas e interpretações.
Além do subversivo romance para os padrões da época, Wilde protagonizou um escândalo público. Moveu uma ação de calúnia contra o Marquês de Queensberry, que o havia acusado de “posar de sodomita”. Detalhe, o marquês era pai de seu amante, o jovem lorde Alfred “Bosie” Douglas. A querela durou meses, culminando, ao contrário do previsto pelo autor da ação, no seu encarceramento por dois anos, com trabalhos forçados.
O crime? Uma infração incluída na Lei Criminal de 1885 pela “Emenda Labouchère”: “flagrante indecência praticada por homens”. Esse tipo penal era genérico o bastante para criminalizar qualquer atividade sexual entre homens, independente de consentimento, consumação e idade dos acusados. Calhou muito bem ao propósito de punir homossexuais numa sociedade moralista e homofóbica. Incluindo Wilde, por supostamente manter relações com o filho de Queensberry e outros parceiros.
Na prática, a sentença representou a ruína social, a bancarrota e o exílio pós-liberdade do dramaturgo. Cinco anos depois do veredicto, ele adoece e morre solitariamente em Paris.
O desatino: trechos do romance e das críticas ofensivas foram lidos no tribunal e usados como artifícios para analisar e julgar o comportamento homoafetivo do seu autor. De certa forma, “O retrato de Dorian Gray” cruzou as margens da fabulação para se tornar mais uma peça na engrenagem de moer desvios da normatividade.
Queriam que a corrupção moral de Dorian e sua entrega a uma vida de prazeres e sensações, o cinismo sutilmente venenoso de lorde Henry e a paixão gay de Basil Hallward revelassem a alma deformada e criminosa do próprio escritor, ele mesmo uma ameaça cultural. Na verdade, à medida que a grande colcha de cetim púrpura desliza para revelar o semblante da figura medonha ocultada por Dorian, é possível vislumbrar, gradualmente, um mero espelho do seu público leitor.