Numa das suas versões da peça “Woyzeck”, Georg Büchner colocou na boca de um dos personagens uma definição aguda de que é um homem ou uma mulher: “Toda criatura humana é um abismo, fica-se tonto quando se olha para dentro”. O que se passa na cabeça de uma pessoa causa vertigem, se assemelhando a um poço sem fundo. Nem em seu último ato o cineasta Jean-Luc Godard deixou de causar espanto ao comunicar, por meio de sua esposa, que apenas havia se cansado da vida aos 91 anos de idade.
Anos atrás, ele pediu que não o deixassem morrer enfermo ou vegetando, sem ter a autonomia e liberdade que sempre teve. Seus filmes são um assombro para quem procura a inteligência ou são um tédio para os cultuadores do entretenimento. Na era da distração, Godard batia na tecla da atenção. Os últimos trabalhos (“Filme Socialismo”, “Adeus à Linguagem” e “Palavra a Imagem”) foram exercícios das possibilidades do cinema como forma de pensamento, criação e imaginação.
“Considero-me como um ensaísta, faço ensaios em forma de romances ou romance em forma de ensaios (…). Para mim, a continuidade entre todas as formas de se exprimir é muito grande”, disse Godard, para quem não havia divisão entre palavra escrita, imagens em movimento e artes plásticas. As citações em seus filmes dão um nó na cabeça.
Entender o mundo atual exige atenção demasiada, porém as coisas desse mundo colocam as pessoas no rumo da distração. Foi o escritor canadense Saul Bellow quem alertou para a predominância do “olhar distraído” na cultura. Além de conhecido romancista, ele era antropólogo e observador atento dos movimentos das sociedades. Um impasse: quando mais precisamos de olhares atentos, dada a complexidade global, o entretenimento nos desvia do que é essencial.
Outro mestre da citação e da leitura como Godard, o escritor Ricardo Piglia não foi tão pessimista quanto Bellow. Para o argentino, existe na atualidade um “leitor salteador”, que passa de um site de internet para um livro do século 19, parando no final de tudo em uma série de televisão. Esse leitor foi percebido, segundo ele, por Macedônio Fernández. Compreender o mundo demanda um olhar simultâneo, descontínuo, sobre uma variedade inédita de formas e conteúdos.
“É um retrato do leitor atual, que já não é aquele que está isolado, concentrado e lutando contra a interrupção. Mas sim que entra e sai do texto, se move, interage com o que está ao redor, vai de um livro a outro ou a outros textos mais rápidos que lhe surgem pela internet. É um leitor que assume a interrupção como parte da narrativa”, diz Piglia, cujo pensamento serve como uma chave para entender o cinema de Godard.
No começo de “Adeus à Linguagem” (2014), Godard coloca na boca de um personagem: há mais informação no “Arquipélago Gulag”, de Alexander Soljenítsin, do que no Google inteiro. As cenas iniciais mostram um estilo salteador: cortes, repetições, imagens digitais com cores saturadas, falas que parecem aforismos. Que o espectador seja um ator do que se passa, que comece a conversar com a tela. Não cabe uma figura sentada numa poltrona, comendo pipoca e vibrando com super-heróis.
O bombardeio de Godard exige o olhar atento e salteador, dada a profusão de citações (livros, filmes, artes plásticas, história europeia). A saturação é um convite à dispersão do espectador, mas ele é convidado, o tempo todo, a entrar no jogo de mensagens, metáforas, sem um significado fixo e definitivo. A obra monumental “História(s) do Cinema” (1998) virou até um livro de poemas provocativos, no qual Godard tira o leitor/espectador do lugar tranquilo. Trata-se de um convite para ver o abismo e sentir vertigem.
No clássico “Viver a Vida” (1962), há uma cena pertinente e memorável até hoje criada por Godard. A personagem da atriz Anna Karina (uma das primeiras esposas do diretor) conversa com o filósofo Brice Parian. Eles discutem a importância do silêncio, o excesso de palavras e os casos quando as pessoas descobrem a necessidade de pensar. Trata-se de uma das sequências mais memoráveis do cinema mundial. O cinema de Godard é para quem gosta de conversar e ouvir conversas.
Os filmes de Godard estão conectados aos períodos em que foram filmados — haja vista as obras do final da carreira que lidaram com os conflitos europeus, como em “Para sempre Mozart” (1996). Sempre haverá algo de datado, mas mente descaradamente quem diz escrever, filmar, encenar e pintar para a posteridade. Como já disse um velho bruxo nos trópicos, todo autor é uma figura de seu tempo e do espaço onde vive.
A forma narrativa escolhida por Godard em seus filmes não é a dramatização do mundo. Não se trata mais do teatro humano. Quando não conseguia dizer algo pela filosofia, Sartre recorria ao romance de ficção, ao teatro e às memórias. O cinema godardiano saiu deste figurino. É o que Gilles Deleuze já falava de Freud: a subjetividade não é mais um teatrinho de papai e mamãe. O ser humano é uma “máquina desejante”, disse o filósofo que foi contemporâneo de Godard.
O olhar distraído procura as séries de televisão que dramatizam a tragédia clássica de uma família em crise. Complexos edipianos ao infinito. Por isso, existe a dificuldade de se penetrar no universo dos filmes de Jean-Luc Godard. Ele incorporou o mundo a seu redor na Suíça em “Adeus à Linguagem”, incluindo o cachorro de estimação, para esmiuçar os rumos da vida contemporânea. Fica sugestão dele: as respostas podem estar mais em um livro do que no Google.