Biografias fazem parte de um gênero bem específico que busca contar a vida de uma pessoa e quanto mais importante ou mais extraordinária tenha sido a existência do biografado, melhor o livro tende a ser. E como poderia deixar de ser interessante a vida de um piloto kamikaze? Sim, aqueles samurais modernos, que deliberadamente jogavam seus aviões sobre os navios aliados ao final da Segunda Guerra.
É o tipo de expectativa que nos acompanha quando começamos a ler “A Terrível Hora dos Kamikaze”, um livro sobre as experiências do ex-piloto Yazuo Kuwahara, escrito em parceria com o repórter Alfred T. Allred.
Tudo começou quando o americano estava no Japão produzindo uma série de reportagens para a revista “Cavalier”, sobre como estava o país 13 anos após o fim da Segunda Grande Guerra. Um dos tradutores, ao saber da busca por assuntos inusitados, acabou por apresentá-lo a Yazuo Kuwahara, que havia servido na Força Aérea do Exército japonês e fez parte de uma das famosas esquadrilhas de kamikaze. Das conversas — intermediadas pelo tradutor — saiu o artigo “Eu fui um piloto Kamikaze”, publicado na “Cavaliaer” em janeiro de 1957. Ao retornar para os EUA, Allred, utilizando-se de notas que havia tomado nas conversas com Kuwahara, além de pesquisas extras, transformou o material em livro, lançado ao final do mesmo ano.
O livro começa dando um exemplo de como estavam as coisas naqueles loucos dias de fim de guerra: o comandante de esquadrilha avisa ao grupo do qual Kuwahara fazia parte, de que dentro em breve eles, que até então voavam como escolta para ataques kamikaze, deveriam também seguir o mesmo destino. Ante o espanto de todo o grupo, ele lembra os jovens pilotos do patriotismo da ação, dizendo também que aqueles dentre eles que não tivessem coragem suficiente para esse ato extremo, que levantassem a mão, deixando claro que não seriam considerados covardes pelo restante. Depois que seis braços foram tremulamente levantados, ele friamente disse: “Já temos nossos primeiros voluntários”. Eis a mentalidade militar daquele momento.
A história então volta no tempo, para quando Kuwahara ainda estava no ginásio e assim como vários de seus colegas de turma tinha aulas de pilotagem em planadores (obviamente uma forma de se treinar novos recrutas para suprir a crescente perda de aviadores nipônicos). Acompanha sua vitória no campeonato nacional da mesma modalidade, que desemboca no inevitável convite para se juntar à Força Aérea do Exército japonês, para orgulho e admiração do pai, que exorta o filho a nunca recuar, trazendo vergonha para o nome da família.
Tirando o episódio inicial dos “pilotos voluntários”, o clima dessa parte é de uma história de um adolescente normal, com sonhos iguais aos de muitos outros da mesma geração, mas que desconhecem a gravidade do momento em que vivem. Pois era assim que o povo japonês se sentia: seguro e crendo no discurso do governo, de que tudo estava indo muito bem.
As tintas mudam rapidamente de cor na segunda parte do livro, quando Kuwahara entra para o treinamento básico; devido a mentalidade militar da época, os rigores físicos, castigos e humilhações perpetuados pelos sargentos, são constantes, em uma espiral de condicionamento e violência — uma forma, segundo o comando, de “retirar os mais fracos”. Uma frase em particular representa o quanto estes jovens cadetes estavam sendo pressionados: ao encontrarem o corpo de um colega de turma que, não aguentando mais os constantes espancamentos, acabou por se enforcar, um dos alunos diz “de alguma forma, ele agora está feliz”.
A terceira parte da obra enfoca a escola de voo propriamente dita, bem como o reencontro com Tatsuno, que também se graduou para piloto de caça. Em pouco tempo estão em combate e é aí que Kuwahara conhece os horrores da guerra e de como a situação japonesa está desesperadora: voando como cobertura para ataques kamikaze, ele está sempre em conflito com o verdadeiro sentido de tudo aquilo, afinal, seu país continuava a lutar em uma “guerra perdida”, como foi dito pela mãe de um dos jovens pilotos enviados para morrer pela glória do Imperador.
Ao ver colegas próximos serem escolhidos como as “bombas humanas” seguintes, Kuwahara não espera ter destino diferente e sobreviver a tudo aquilo, afinal, era tudo “só uma questão de sorte mesmo”: ser abatido por um piloto inimigo ou ver seu nome na lista daqueles selecionados para o sacrifício.
E essa certeza aumenta quando recebe uns dias de folga para poder visitar a família, no que se apresenta como uma despedida. Entretanto, quando desembarca na cidade vizinha de onde sua família mora, acaba presenciando um ato que mudou não só a guerra, como todo o mundo: naquela manhã de 6 de agosto, Yazuo Kuwahara estava em Hiroshima e se tornou um dos sobreviventes do primeiro ataque nuclear da história. O fim próximo da guerra acabou por evitar que ele jogasse seu avião contra um navio americano.
Uma grande história de vida, não concordam?
O livro foi muito bem de vendas nos Estados Unidos e por 50 anos, uma das maiores fontes quando se tratava dos pilotos suicidas japoneses. Entretanto, em outubro de 2006, o site da American Legacy Media, publicou um artigo apontando dez discrepâncias históricas encontradas no livro, que iam da troca de modelo de avião usado pela Marinha — o tipo citado no livro — e Exército — onde Kuwahara estaria alistado, passando por lugares de bases militares, datas de ataques e navios atingidos.
Como bom repórter, Alfred T. Allred retornou ao Japão e, não obtendo de Kuwahara nada mais que o silêncio — primeiro por opção e depois por sua morte — acabou por encontrar dois colegas de escola de Kuwahara, que lhe afirmaram que este não só nunca havia vencido nenhuma competição de planadores, como nem na aviação do exército havia atuado; teria, ao contrário, sido somente mais um dos garotos convocados para tarefas auxiliares nas bases militares.
O fato de não ser um relato verídico acaba por não diminuir o livro; ele somente foi realocado da sessão de autobiografias para a de ficção. Em grande parte pela qualidade do texto de Alfred Allred, que teceu trechos como um dos últimos pensamentos no livro: “Em certo sentido, somos homens de idade. E no entanto, somos muito moços e temos o futuro à nossa frente. Devemos agora dedicar-nos não à morte — e sim à vida — à reconstrução do Japão, para que ele tenha um dia poder e seja respeitado por todas as nações por seu poder voltado para o bem. Que homens, meus camaradas, jamais conhecerão a guerra como conhecemos? E que homens desejarão a paz como a desejamos?”
O caso de “A Terrível Hora dos Kamikaze” bem evoca a frase final do western “O homem que Matou o Facínora”: “Quando a lenda é maior que que o fato, publique-se a lenda”.