É ética sim!

É ética sim!

Há aproximadamente dois anos participei como ouvinte de uma audiência pública no senado promovida pela senadora Ana Amélia, que tinha como objetivo ouvir as partes envolvidas na regulação ética da pesquisa clínica no Brasil. Tratava-se de resposta a uma demanda da indústria farmacêutica, ali representada, entre outros, pelo presidente da Interfarma, Antônio Brito. Ele abriu sua participação com a afirmação que viria a se tornar seu mantra: “Não se trata de ética.” Toda vez que ele se manifesta publicamente sobre o assunto, faz questão de frisar isso. A mais recente foi seu artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, em que, para opinar sobre uma droga que nunca sequer foi submetida ao sistema CEP/Conep, aproveitou para criticar o sistema, alegando (surpresa!) não se tratar de ética.

O ponto defendido por Brito, à superfície, faz sentido. Somos todos éticos, não estamos discutindo isso, mas, sim, prazos e burocracia. De fato, na época da audiência pública, até cabia falar em prazos, já que a CONEP estava assoberbada de serviço, sem estrutura para dar conta. De lá para cá foram recrutados pareceristas ad hoc e contratados mais assessores técnicos, o que diminuiu bastante o prazo médio (atenção: médio). Foi esse o foco da defesa do coordenador da Conep, o médico Jorge Venâncio, naquela audiência. Entretanto, saí de lá com um gosto amargo e uma pulga atrás da orelha. Pareceu-me que prazos e burocracia eram apenas uma cortina de fumaça para o que estava por vir. Isso porque os argumentos usados por pesquisadores clínicos na audiência poderiam ser classificados de risíveis, não fosse sua crueldade. “90% de pacientes com câncer desejam ser cobaias”; “Pacientes ficam desesperados para participar e o sistema não deixa”; “Participar de uma pesquisa clínica é ter a chance de ter um ótimo tratamento”. Notem que as duas primeiras afirmações são a razão de ser do sistema CEP/Conep. É exatamente porque a população que serve de cobaia a pesquisas clínicas é extremamente vulnerável, portanto disposta a aceitar abusos, que o sistema CEP/Conep é intransigente em sua defesa. A terceira afirmação é uma confissão de culpa. Ora, se os pacientes dos serviços que realizam pesquisa clínica precisam de participar de uma pesquisa para ter o tratamento que merecem, então tais serviços não o estão provendo como rotina.

Infelizmente, o tempo mostraria que meu temor tinha fundamento. A despeito do esforço contínuo da CONEP, a demanda da indústria farmacêutica se materializou num projeto de lei (PL 200/2015) proposto pela senadora Ana Amélia, além dos senadores Waldemir Moka e Walter Pinheiro. Trata-se de um bizarro texto cuja base é o chamado Manual de boas práticas clínicas, que não é um documento de regulação ética, mas, sim, operacional. E é neste projeto de lei que se vê como se tratou, sim e sempre, de ética. Além de propor que a incômoda Conep deixe de existir, há artigos particularmente problemáticos.

O 27 trata do uso de placebo: “A utilização de placebo só é admitida quando inexistir tratamento convencional para a doença objeto da pesquisa clínica ou para atender exigência metodológica justificada”. Note que a ressalva feita à “exigência metodológica justificada” escancara as portas para um mundo de abusos. O 28 trata do fornecimento da medicação após acabada a pesquisa, restringindo-o a “risco de morte” e “ausência de alternativa terapêutica satisfatória”, esta última também escancarando a porta para interpretações ao sabor do patrocinador da pesquisa.

São estas as principais quedas de braço entre a CONEP e “pesquisadores” e seus patrocinadores, justamente o motivo dos prazos se alongarem. Pesquisadores com aspas são, na verdade, coletadores de amostras para o patrocinador. Não têm absolutamente nenhuma voz no desenho dos projetos de pesquisa. E por isso são obrigados a aceitar o que lhes é imposto, fazendo com que as pendências vão e voltem várias vezes, prolongando indefinidamente os prazos. Veja que “prazos e burocracia” são o que vem à superfície, mas o pano de fundo é a defesa intransigente dos direitos do participante de pesquisa brasileiros. Numa palavra: ética.

Outros argumentos dos representantes da indústria farmacêutica, pesquisadores ou não, também soam razoáveis numa análise apressada. Refiro-me à alegação de que o Brasil quase não pesquisa medicamentos novos, e que a perda de pesquisas clínicas é uma perda financeira importante ao país. E ainda que as regras flexíveis para placebo e fornecimento da medicação pós-pesquisa são boas pros Estados Unidos, Japão, por que não o seriam pro Brasil?

Em primeiro lugar, vale dizer que medicamentos “novos” são pouco pesquisados tanto aqui quanto no resto do mundo. O que se faz, majoritariamente, é testar drogas “me too” (eu também), além de indicação nova para uma droga já conhecida, ou ainda pequenas mexidas em drogas cuja patente está pra cair. Drogas “me too” seriam muito bem-vindas se servissem para estabelecer uma concorrência e baixar o preço das similares, mas, na prática, não é o que acontece. E quando são testadas contra um placebo em vez da similar, colocam o participante em risco desnecessariamente, por conta de “exigência metodológica justificada”. Quanto à perda financeira, há algo que nunca é dito, e que tem enorme implicação ética: os pesquisadores recebem boas remunerações por cada amostra coletada. O que há de mal nisso? Nada. Há, porém, um evidente conflito de interesse com evidentes implicações éticas, cuja consequência óbvia deveria ser: quem tem conflitos de interesse no estabelecimento das normas regulatórias, jamais poderia participar de sua construção.

Quanto ao apelo fácil que tem a ponderação de que países “desenvolvidos” fazem assim, por que não o Brasil. Pra começo de conversa, já há nesses países um crescente questionamento, particularmente no que diga respeito ao placebo. Um editorial recente numa das revistas de mais alto impacto na oftalmologia (Bakri, “Ophthalmology”, março de 2015), é um bom exemplo disso. Além do mais, achar que o que é bom pros Estados Unidos é automaticamente bom pro Brasil não é apenas uma demonstração de mediocridade colonial, mas também imprudência. As regras americanas foram as responsáveis, por exemplo, pela monstruosidade recente de se aumentar o preço de uma droga antiga (daraprim) de menos de vinte dólares para mais de setecentos*. Inacreditável, mas acredite, é verdade. O país do “livre mercado” adora um monopólio. O que é bom pra eles é bom pra nós?

Por fim, cabe a pergunta: a quem serve o PL 200? O congresso nacional precisa enxergar além da superfície. No fundo, é ética sim.

 

Flávio Paranhos

Filósofo e médico.