O florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), pai da ciência política moderna, desbravou a Renascença elaborando textos em que dissertava acerca das vontades ocultas dos homens em suas relações públicas. Dono de uma prosa acidamente escorreita, certeira como um florete, o polímata dilacerava os tantos rivais, inconformados com tamanha permeabilidade entre assuntos os mais diversos — de filosofia a história, passando por poesia, literatura, música e política internacional —, lembrando que ao homem importa muito mais parecer do que ser. Maquiavel faz menção ainda ao pensamento raso que crava que na vida, por tão curta, deve-se sempre optar pelo máximo de pragmatismo, daí passando aos registros da evolução da humanidade, movimento irregular — pleno de altos e baixos (muito mais estes do aqueles), dos postulados invencíveis porque definidores da falta de constância do indivíduo no mundo e em seus ambientes menos sabidos e das contradições sempre em xeque, graças também à pluralidade humana —, de onde teria surgido o tal anexim sobre os fins justificarem os meios.
O americano Phil Alden Robinson teve de esperar alguns meses para lançar seu então mais recente trabalho, concluído já antes da hecatombe do 11 de Setembro de 2001, tão acachapante foi o impacto de sua mensagem. “A Soma de Todos os Medos” só viu a luz em 2002, abalando consciências críticas (ou nem tanto) ao digressionar a respeito da sempiterna tensão política de potências intolerantes entre si — no caso, os Estados Unidos e a Rússia — degringolar numa Terceira Guerra Mundial cujo poder destrutivo teria o condão de arrasar o planeta algumas dezenas de vezes, “façanha” a ser conseguida com a ajuda de um armamento que se foi sofisticando de 1945, quando do desfecho das batalhas contra o nazismo de Hitler, iniciadas seis anos antes, até esses tempos pós-modernos (e estranhos) que o homem contempla. Como se assiste em “O Leopardo” (1963), clássico de Luchino Visconti (1906-1976) adaptado do romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) que conta a história de um nobre receoso de ficar sem seus privilégios quando da unificação italiana (1848-1871), muita coisa muda para que tudo possa continuar igual.
Robinson também verte para o cinema uma obra literária, mas Tom Clancy (1947-2013) não fez a menor questão de torcer sua narrativa para o encerramento auspicioso que se encontra no filme. Muito antes disso, o roteiro de Daniel Pyne e Paul Attanasio lança mão de uma infinidade dos lugares-comuns em produções congêneres para prender o espectador desde logo, além da história propriamente: um casal de mocinhos bonitos e carismáticos, americanos, por óbvio; antagonistas (russos) fingidos e pouco afetos a conversa; e em meio aos dois grupos os coadjuvantes que balançam o enredo para trás e para frente, a depender da conveniência. Jack Ryan, um agente da CIA em ascensão, é intimado a acompanhar William Cabot, o diretor da agência vivido por Morgan Freeman com a graça de sempre, numa série de compromissos na Rússia. Meio por acaso, contando com o faro de espião que o tem ajudado a subir muito mais rápido que o habitual — e, claro, com a dose de boa fortuna que sói amparar tipos assim — Ryan, desempenho impressionantemente maduro de um Ben Affleck ainda trintão, descobre o segredo que dá azo à história, envolvendo uma ogiva nuclear perdida na Síria em 1973 depois que o avião que a transportava cai.
Enquanto a trama não chega ao ponto pelo qual o diretor — famoso por thrillers magistrais a exemplo do inesquecível “Quebra de Sigilo” (1992) — tanto anseia, florescem as subtramas cheias de espírito protagonizadas por Affleck e Freeman. Pouco depois da abertura, Ryan é visto sair às pressas da cama onde estava com Cathy, a aspirante à namorada interpretada por Bridget Moynahan, para atender a um chamado do superior. Horas depois, na aeronave que o conduz à missão em que irá apresentar o rendimento de que toda a humanidade depende, é aconselhado por Cabot a dizer a verdade quanto a ter de faltar ao encontro com Cathy, médica, que pensava que Ryan fosse historiador e, por evidente, não acredita em nada do que ele diz. No extremo oposto, o do suspense de fato, John Clark, o burocrata sinistro de Liev Schreiber, catalisa as verdadeiras intenções do longa ao esclarecer o que acontece nos bastidores das negociações com os russos.
Embora tenha uma das sequências apocalípticas mais estarrecedoras — e convincentes —, “A Soma de Todos os Medos” ainda consegue ser um filme de amor, como se nota no segmento final. Robinson dá seu recado com honestidade, apostando na esperança, ideia meio em desuso hoje. Talvez seja o caso de ressuscitá-la.
Filme: A Soma de Todos os Medos
Direção: Phil Alden Robinson
Ano: 2002
Gêneros: Thriller/Ação
Nota: 9/10