Filme com Denzel Washington na Netflix fará você se contorcer no sofá e o coração sair pela boca Scott Garfield / Sony Pictures

Filme com Denzel Washington na Netflix fará você se contorcer no sofá e o coração sair pela boca

A humanidade tem seus tipos sonhadores, de um idealismo meio marginal, em proporção muito inferior à que compõe a imensa maioria feita dos que simplesmente não se importam ou daqueles que se orgulham de sua condição de membros do lado negro da força sem nenhum pejo. Impossível pensar numa vida meramente digna sem os poucos heróis que nos livram das tantas ciladas do mundo, um lugar francamente hostil aos ingênuos e aos puros de coração, numerosos, mas desde sempre acossados pela maldade humana. E como lidar com a evidência inescapável de que é precisamente o mal quem conduz boa parte das relações do homem, começando em certas famílias para daí migrar para ambientes de trabalho em todas as áreas, e se metamorfosear, com muito zelo, de lagarta em borboleta para voejar com alguma graça pelos vínculos mais íntimos que se pode estabelecer com outra pessoa? Tornar-se cada vez mais recluso, como o molusco inerte e apavorado dentro da concha, ou admitir a realidade cínica de que são raros os que prezam por honestidade e mergulhar de cabeça no lago escuro da mentira, temendo se ferir em algum rochedo que a luz do sol não alcança?

Antoine Fuqua tenta responder a essas questões em “O Protetor” (2014), com a ajuda providencial de seu protagonista, um herói já meio esgotado, mas que não se furta a dar sua contribuição quanto a resolver aqueles conflitos que só dependem de homens como ele. O primoroso roteiro de Richard Wenk é capaz de esquadrinhar à perfeição a figura desse homem invulgar, texto inteiramente assinalado por passagens que reverberam dos olhos para o cérebro porque dotadas de apuro estético e profundidade filosófica; contudo, é Denzel Washington que, como sói acontecer, dá todo o lustro de que personagens assim carecem. Sua composição, límpida, mas nunca óbvia; precisa, e jamais tediosa, decerto é um dos ingredientes principais do excelente rendimento da história, seja qual for o ângulo por onde se deseje mensurar o longa. Com a sua valorosa ajuda, com seu talento supino, o enredo vai se revelando um ajuntamento de ótimas surpresas, graças às subtramas muito bem conduzidas em que o astro sempre dá um jeitinho de se meter.

Fuqua aproveita o farto material com que Wenk o guarnece e ainda consegue superar as muitas expectativas que o público vai alimentando quanto à trama central. No introito, antecedido pela epígrafe de Mark Twain (1835-1910), Robert McCall, o tipo soturno a que Washington dá vida, mais parece um middlebrow à Travis Bickle, o motorista cheio de rancores contra a civilização imortalizado por Robert De Niro em “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese. Minutos depois, a impressão do público transforma-se por completo: ao contrário do que faria o anti-herói de De Niro, McCall aproveita o tempo livre para fazer suas elucubrações sobre clássicos da literatura universal como “O Velho e o Mar”, de Hemingway; “Dom Quixote”, de Cervantes, e “O Homem Invisível”, de H.G. Wells, temperamento incompatível ao caos sistêmico de Bickle. A prostituta menor de idade que entra em sua vida colateralmente, quase sem querer, nunca passa de uma confidente de ocasião, que se senta a sua mesa ávida por uma “conversa tranquila” antes de pegar no batente. É de Teri, de Chloë Grace Moretz, a melhor definição do personagem de Washington, um homem, segundo ela, não exatamente triste, mas perdido.

Teri, nome de guerra de Alina, é a responsável por fazer reviver em McCall um seu lado que ele julgava extinto. Ele fica sabendo que a garota fora brutalmente surrada — e a narrativa se desenrola na Boston dos dias atuais, não na Nova York de meados dos anos 1970 do filme de Scorsese! —, e toma as dores dela, até porque não conseguiria agir de outro modo. O que se vê alguns quadros depois são as sequências de luta mais bem ensaiadas do cinema recente, em que Washington faz de seu protagonista o justiceiro implacável que encara sozinho uma quadrilha de quase dez russos enfezados, dando a um saca-rolha a função que se espera num filme como esse. Com direito a um final explicitamente feliz, “O Protetor” dispensa maiores racionalizações. Ao longo de 132 minutos, que passam entre uma e outra tomada de fôlego, Denzel Washington se reafirma como um dos atores mais talentosos de Hollywood de todos os tempos — e com a mesma cara de garoto de há quarenta anos.


Filme: O Protetor
Direção: Antoine Fuqua
Ano: 2014
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 10