O amor talvez seja a maior loucura a que o gênero humano se expõe — e que vai continuar a se expor pela eternidade afora. Na esperança de fazer da vida um tempo um pouco menos avinagrado, o homem procura alternativas a fim de suprir suas tantas carências, e aí surgem as drogas de todas as composições e nas mais potentes intensidades, os hábitos saudáveis e os que arrastam-no para a debacle física e moral, a dedicação à vida intelectual, a aposta na carreira, os sonhos. Justamente nessa última categoria se inclui o amor, que por seu turno abre-se para infinitas variáveis, dentre as quais o casamento monogâmico é a mais popular. Há algumas espécies que se destacam quanto a manter relacionamentos fiéis por toda a vida dos parceiros, mas, evidentemente, apenas ao homo sapiens se pode atribuir a faculdade de optar por tal conduta, uma vez que nem passa pela cabeça de araras-azuis ou golfinhos a possibilidade de acasalar com outros indivíduos — e se passasse, se conservariam do jeitinho como sempre viveram, com medo de algum revertério genético que pusesse fim ao conjunto. Seres humanos somos diferentes, e tal como os bonobos damos vazão aos apetites que nos assaltam a despeito da fase da vida em que nos encontremos, mesmo que rodeados das nuvens fugazes da felicidade. O problema é que, à diferença daquela família de primatas, também a culpa nos rende.
Fazendo uso de esquetes humorísticos e inserções de cenas de documentários sobre a vida selvagem, a diretora sueca Tuva Novotny se estende sobre as vitórias e os fracassos de um casamento em “Diorama” (2022), empreitada sofisticadamente divertida em que não faz nenhuma questão de perpetuar os mitos sobre a vida a dois, uma aventura tão enriquecedora como trabalhosa. Novotny mostra-se sempre disposta a esgrimir seus temas ao limite da exaustão, quando os projeta para o espectador como o título de seu filme insinua. O público tem a impressão de poder tocar aquele mundinho paralelo, intrigantemente parecido com a vida como ela é para muita gente. Mas essa brincadeira vai ficando séria.
A aproximação de Frida e Björn se deu da maneira mais natural: os dois se conheceram, ficaram amigos, se apaixonaram, foram morar debaixo do mesmo teto e os filhos não demoraram a aparecer. A diretora trabalha seu roteiro de modo a explicar do ponto de vista da biologia — mas frisando também a importância do componente sociológico — a tendência das relações entre dois parceiros acabarem sempre eivadas pelo enfaro e, a partir de então, condenadas, segundo seu argumento, ou ao fim ou às modalidades afetivas que servem de trampolim para o abismo com muito mais efetividade que o divórcio. Os personagens de Pia Tjelta e David Dencik se ressentem de não conseguirem mais transar com a regularidade dos tempos de namoro, sempre cercados pelos filhos ainda em tenra idade. Numa conversa de travesseiro que por pouco não descamba para uma briga mais vigorosa, Frida levanta a necessidade de cada qual fazer alguma coisa sem que o outro esteja junto, a fim de manter e estimular o gosto pela liberdade, pela privacidade, pela dose de mistério que supostamente tempera as uniões quando começam a ficar insossas além do suportável, intragáveis. Na mesma semana, aprontam-se para seus respectivos compromissos, desacompanhados do cônjuge, como se fossem ao baile de formatura do ensino médio. Por óbvio, tudo se encaminhava num leito de muita harmonia, uma harmonia improvável demais.
No segundo ato, Novotny alia diálogos certeiros e planos-sequência no intuito de se alongar sobre como ficam as vidas de seus protagonistas com a separação, motivada pelo adultério da personagem de Tjelta. A narrativa apresenta laivos de machismo e misoginia ao optar por dar ênfase desproporcional a infidelidade de Frida, sem pontuar que Björn, claro, tem sua parcela de culpa, primeiro por também se sentir asfixiado num casamento que ruía silenciosamente, mas planejar viagens de moto com os amigos sem se preocupar em saber a opinião da mulher. Além disso, a diretora também o registra em jantares íntimos regados a cocaína e amigas mais desinibidas que o recomendável, uma ótima participação de Ditte Hansen. Seguem-se as etapas traumáticas que todos conhecemos, divorciados ou não, intermediadas pela baixaria do ciúme e da dor de cotovelo do ex-marido, que cria toda a sorte de empecilhos para a agora ex-mulher, até judicializar a questão e exigir que a custódia exclusiva das crianças, o que desperta o ressentimento latente de Frida.
Em se excetuando os deslizes pontuais, quase sempre relacionados à defesa injusta do lado masculino — e aos tais dioramas com atores fantasiados de ratazanas-do-mato, gambás, micos, que cansam um pouco —, o trabalho de Novotny tem lá sua graça ao dar alguma leveza a assuntos sempre delicados. A sequência final, que apresenta um late show que explicaria as dramatizações zoológicas, com seu quê de nonsense, coroam a narrativa com um humor meio bestial, com e sem trocadilho, exaltando a mensagem inicial do amor como o ridículo, o patético, o insano da vida. Se o amor, definitivamente, não é uma promessa de felicidade, o casamento se presta ao último refúgio do desvario de amar. Para o bem e para o mal.
Filme: Diorama
Direção: Tuva Novotny
Ano: 2022
Gênero: Romance/Comédia/Drama
Nota: 8/10