Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
(Jorge de Sena, Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya)
1.
Não sei, Emiliana, que mundo será o seu; sei, contudo, que parte dele virá da história de vida de seus pais, e essa história é também a minha. Como dirão a você um dia, eu e eles viemos ao mundo em momentos próximos e acabamos fazendo juntos o percurso das nossas trajetórias, e esta nossa trajetória compartilhada — também dirão a você — se chama “amizade”.
Não tive filhos, Emiliana, e talvez desta decisão eu ainda me arrependa, mas confesso que sou tão curioso por tudo aquilo que me cerca que a ausência do filho não tido não me dói como alguns creem doer (F., de quem você também ouvirá muito, teve dois filhos, Emiliana, hoje já rapazes, mas que um dia foram como você — um projeto muito especial). Há aí algum egoísmo (não ter filhos), dizem, e não ouso discordar em voz alta; intimamente, bem sei, existe mais medo que egoísmo quando se decide ser velejador solitário. Tenho então vivido meio à solta, gastando-me muito em atividades fúteis, para desejar agora, já entrando na meia-idade, acrescentar uma pequena vida — algo não fútil, portanto — à minha própria vida; por isso, também se pode ser contente vivendo um pouco a alegria dos filhos alheios.
Há muito tempo, vi nos olhos de amigos de meus pais a emoção que sentiam quando se tornavam também meus amigos, eu, uma pequena extensão de meus pais e, assim, daqueles mesmos amigos. Alguns desses amigos você conhecerá, de outros apenas ouvirá o nome, várias e várias vezes, talvez até se enfastie com as constantes e repetidas histórias sobre todos eles; um dia, porém, você haverá de reconhecer em si o mesmo sentimento que faz com que seus pais e os amigos deles ecoem nomes como Celso, Rosa, Rúbio e muitos, muitos mais. E é este o motivo que me faz escrever esta carta, falar da vida que vivemos antes de você ver a luz do mundo numa cidade chamada Goiânia, exatos 2022 anos depois do nascimento daquele que, espero, você compreenderá como sendo o seu Salvador.
Eu me creio um homem azarado (e tendente a fazer o que chamamos de burradas), Emiliana; como sei que também sobre isso você ouvirá algumas histórias, adiei a escrita desta carta por alguns meses (sou também — palavrinha difícil agora — um procrastinador), involuntariamente, dando tempo, assim, para que traduzissem os livros de um escritor norueguês famoso, Karl Ove Knausgård, quatro livros intitulados com os nomes das estações do ano e que são igualmente uma carta para sua filha ou filho. Ainda estou no primeiro deles, “Outono”, e Knausgård descreve suas relações com objetos do cotidiano e com plantas e bichos, fazendo uma espécie de manual de funcionamento do mundo para Anne ou Eirik, os nomes que ele e sua esposa escolheram para a filha ou o filho que virá (ou já veio; como o livro é traduzido, imagino que já tenha ocorrido o nascimento, mas pretendo ler os quatro livros sem buscar essa informação, Emiliana, porque muitas coisas ficam mais saborosas quando não sabemos tudo sobre elas, e sei que um dia — “um dia” se repetirá bastante aqui — você compreenderá isso). Fui azarado, imaginei, e pensarão que furtei a ideia do norueguês. Bem, que me importa? Já escrevi outras cartas, antes, para filhos de amigos, e aqui não pretendo falar de maçãs, vespas, galochas, piolhos, telefones e as outras mil coisas que Knausgård — que nome, não? — vai explicando a Anne ou Eirik; além disso, ele, lá no frio país em que mora, não sabe que a esperada Emiliana, filha de pais com muitos amigos, nascerá numa quente cidade chamada Goiânia. Talvez o azar de repetir o que ele já fez se torne sorte, então, por eu poder falar do que ele não falou e por eu me dirigir a você, Emiliana, e não a Eirik ou a Anne.
Se for mesmo sorte, um dia você verá em algum mapa um local chamado “Noruega” e se lembrará de que antes lera aqui, ou ouvira alguém lendo aqui, essa palavra. Tudo isto, contudo — mapas, Noruega, “um dia” e eu mesmo — está ainda no seu futuro (escrevo “seu futuro” e já estremeço por antecipação, o que você compreenderá se um dia — olha aí, de novo — ler estas linhas). Não sei, Emiliana, que mundo será o seu, mas tenho muita vontade de fazer parte dele, se não de modo presente, ao menos como um nome que saia da boca de seus pais com saudade.
2.
Escrevo “Emiliana” porque assim você se chamará, mas você só será mesmo “Emiliana”, formada em seus gostos e em sua forma de agir no mundo, quando tiver, sei lá, uns 20 ou 21 anos, idade em que algumas raivas que terão surgido em você — elas surgem em todos nós, Emiliana — não mais estarão aí (elas também desaparecem em quase todos nós).
E o quê, Emiliana, me cabe escrever a alguém que terá o seu caminhar próprio, a sua primeira vez nas coisas pequenas e grandes que formam a teia da vida? Se o norueguês, com mais engenho e arte (e torço muito para que você seja daquelas que saibam a origem desta expressão, “engenho e arte”), já descreveu maçãs, vespas, galochas, piolhos e telefones a uma pessoa ainda em formação, fico com a parte do mundo que conheço e que ele provavelmente nem mesmo imagina existir: esta Goiânia em que você nascerá e onde eu, seu pai e sua mãe e mais algumas pessoas convivemos, aqui nesta terra que será a sua por direito de nascimento; falando de nós e desta terra — que, sim, será sua —, falo de algo muito precioso para nós, a amizade que levantamos, tijolinho por tijolinho, e que é uma das alegrias da minha vida, Emiliana.
3.
Você, Emiliana (sim, um dia), compreenderá que toda amizade é uma das muitas formas que o amor assume aqui na Terra. Antes, porém, você perceberá sem compreender e sentirá essa força atrativa que não se explica muito.
Primeiro, você amará seus pais, um amor meio instintivo, de bicho, de febre miúda que precisa de comida, de banho, de abrigo; depois você os amará como propriedade, como coisa sua, “seus” pais e de mais ninguém. Outros amores virão, por objetos, por exemplo (eu amava — amo — mapas e livros; já amei selos, gibis, bonequinhos do que chamávamos “Forte Apache”, bolas de gude, moedas, cacos de cerâmica, redes de pegar borboleta, a bandeira do Brasil e mais algumas coisas que se perderam numa vida de dispersão. E bichos, com certeza, com este amor hoje mais forte do que aquele que tínhamos antigamente por cachorros e gatos, não mais propriedade nossa e sim um tipo de extensão de nós mesmos. Hoje amo uma mulher em que tudo isso se condensou, se cristalizou, com as qualidades e os defeitos próprios de um amor intenso — você haverá de ter a sorte de um dia também amar assim, Emiliana).
Virão os primeiros amigos, virão namorados, virá muita coisa que você amará; nós amamos até mesmo, Emiliana, momentos, memórias, gestos, pedaços de rua ou de rio e trechos de areia — sei até de gente que ama umas traquitanas de pegar peixe (seu pai…), vá entender.
4.
Amizades todo mundo, ou quase todo mundo, parece ter, eis o que você logo notará. Mas não é bem assim, eu garanto. Vamos ver?
5.
Um dia dirão a você, Emiliana, que vivemos, logo antes de você nascer, dois anos de muito medo. Um bichinho nos assustou e alterou muita coisa com que estávamos acostumados (não foi exatamente um “bichinho”, mas sei que assim dirão a você).
Tivemos medo, eu disse. Muitas pessoas que estavam conosco deixaram de estar, meio de repente. Por causa do medo que tivemos e da amizade que se fez mais forte em razão do próprio medo é que a sua vinda, Emiliana, nos parece um pequeno milagre, uma epifania mesmo, por termos todos persistido e chegado até aqui. Vamos nos fortalecer ainda mais e seguiremos persistindo — afinal, se já tínhamos amigos, agora temos também você, que nascerá como cria de matilha de lobos, por todos protegida para que nos redima de nossos erros, assim como redimimos os nossos antepassados dos erros deles, nesta roda-gigante em que entramos juntos. Venha se juntar a nós, Emiliana: a vista haverá de ser belíssima; se não for, bem, aqui estaremos todos juntos tapando qualquer vista não tão bonita. Amizade, lembra-se, Emiliana?
6.
Há tantas regras no mundo; você as conhecerá, Emiliana, você também se revoltará contra algumas e depois as compreenderá e aceitará. Com a amizade não poderia ser diferente, ela tem suas regras e seus rituais, que devemos seguir e, em alguns casos, desobedecer, porque obedecer e desobedecer são pontas com que podemos atar um mesmo fio. Que tal vermos, Emiliana, um pouquinho dessas regras e desses rituais?
7.
Você ouvirá que “os opostos se atraem”; às vezes, ouvirá justamente o contrário, “pessoas diferentes não funcionam muito bem juntas”. São ideias sobre o amor, mas a amizade é uma das formas com que o amor se apresenta; creio já ter escrito isso, não, Emiliana? Se não escrevi, agora está escrito. Escrito em toda a glória da imensa bobagem que essas ideias transmitem.
Bobagem, sim, porque amores e amizades se fazem por amor e por amizade mesmo, não por escolha de semelhanças ou diferenças. Há como que uma fisgada às vezes, um primeiro encontro em que já se sabe que ele é o início de algo que durará muito. Em outros momentos, é preciso assentar tijolos e verificar a espessura da argamassa, mas também aí existe amor e amizade, e algumas vezes os tijolinhos se rompem e é nossa obrigação colocar outros, até mais firmes, no mesmo lugar (e um dia F. contará a você como nos conhecemos, já há muito tempo, e como nos estranhamos então — tijolo e argamassa, tijolo e argamassa, sempre e sempre, mesmo quando uma parte da parede parece cair).
Pois um dia eu vi seu pai pela primeira vez. Estávamos eu e outros amigos de quem você também ouvirá os nomes no futuro, B., F.Jr. e mais alguns. Era arredio, o seu pai J.R., sentava-se sozinho e ficava escrevendo palavras num caderninho que vigiava com ciúme de Otelo (ah, como quero que você seja mesmo do tipo que saiba compreender expressões assim, “ciúme de Otelo”…). Resolvi então assentar o primeiro tijolo com a primeiríssima argamassa: fui à mesa dele, arrematei o caderninho e o lancei numa fonte de água; a partir daí, ele passou a se sentar conosco (e ainda não abandonou a mesa).
Há mais, Emiliana, nesta história que é como o meu próprio sangue correndo em mim.
8.
Vivemos aventuras, Emiliana, eu e seu pai, e de algumas você saberá, mas outras eu e ele preferimos esquecer… Você se cansará, Emiliana, de ouvir coisas como “E teve aquele dia em que…”, fará cara de enfado e só muito mais tarde apreenderá que cada história recontada mil vezes é também um dos tijolos com que se constrói qualquer caminhada conjunta. Você compreenderá, Emiliana.
9.
Mas faltava ao seu pai, Emiliana, sem que soubéssemos, o complemento perfeito: sua mãe R. Quase perfeitos são porque se mostram ao mundo como dois e ao mesmo tempo um só; perfeitos porque as imperfeições (todos as temos) ficam em casa quando estão conosco; perfeitos porque as falhas de cada um (todos também as temos) são compreendidas e perdoadas: “Coisas de J.”, “Coisas de R.”, talvez pensem eles para logo irem cuidar de mais um dia, claro que cercados de amigos.
E os amigos se amontoaram, tantos que somos. Você os irá conhecer, Emiliana: F., W. e M.O., V. e E., C.M. e C., A. e A.D., M. e muitos outros mais. Mas se muitas pessoas têm amigos, Emiliana, o que nos torna tão distintos assim?
10.
Não sei se tenho todas as respostas. Penso, porém, bastante sobre isso. Penso nos seus pais, por exemplo, Emiliana, e posso dizer que eles nunca falharam comigo. Sou de trato difícil, esquecido de datas, cuido de pais idosos e tenho manias pouco agradáveis; ainda assim, eles se fizeram meus amigos e atendem a qualquer pedido de socorro meu — para acudir um carro sem gasolina, um parente doente, uma tristeza repentina (eu as tenho, Emiliana, e são muitas), uma vontade de contar alguma piada idiota… E também para remendar namoro enguiçado (namoros enguiçam, Emiliana, mas também se consertam), opinar sobre minhas ideias às vezes grandiosas e malucas, dividir as angústias do dia ou simplesmente para ficarmos todos quietos, calados mesmo, sentados à mesma mesa e apenas “sendo”, de modo que Deus, se nos olhar lá de cima, dirá “Olhem lá aqueles três…” e irá cuidar de suas muitas atividades divinas, com um sorriso no canto da boca (obrigado, Rubem, e mais uma vez espero, Emiliana, que você saberá reconhecer a imagem).
Falei de seus pais, Emiliana, mas todos aí acima são assim. Lealdade, portanto, é um sentimento que desejo que você logo aprenda conosco. Há mais, claro. Existe em nós pouca importância para cargos e títulos — as medalhas do mundo — e cuidados excessivos com as pequenezas que nos alimentam mais do que galardões (“galardões”? Sua mãe dirá a você o que são, Emiliana). Alegramo-nos uns com os outros, então, e sabemos que a alegria não decorre de interesses pelos tais galardões — eis um bom resumo do que tento explicar.
Lealdade e alegria, aí está, talvez, a resposta que procuro, Emiliana, e você descobrirá as suas respostas também, no seu devido tempo: quaisquer que sejam elas, que sejam tomadas seriamente e como artigos de fé.
11.
Tive a honra, Emiliana, de abençoar, na fé que professo, a união dos seus pais, assim como abençoei a de A.D. e A. (e você haverá de ser amiga do filhinho deles, Emiliana, e isso nos tornará ainda mais lobos cuidando das crias da matilha). Para eles escrevi, naquele dia de 2018, algo que repito aqui porque serve aos seus pais e serve a todos nós como confissão de minha lealdade, inclusive a você, que ainda não se juntou de vez a nós (minha lealdade pode se dar de modo meio confuso, às vezes reajo com desmedida força a coisas que poderiam ser melhor examinadas por mim, mas ela segue, e seguirá, sendo lealdade).
Onde eu estava, Emiliana? Ah, sim, o que escrevi no dia do casamento de A.D. e A.:
“Chegou o dia: hoje eu vou ali apadrinhar o casamento dos amigos A.D. e A.G.F. Uma honra imensa, claro, e, se eu pudesse, cometeria um daqueles discursos que padrinhos fazem em filmes. Chamaria a atenção dos convidados batendo o garfo num copo e faria um pigarro mental para, em seguida, altissonante e com voz embargada, registrar o momento nos devidos livros históricos: ‘Meus amigos, hoje estamos aqui para…’ etc. etc. e tal. Uma pena não termos esse costume; sou, a propósito, cantado em prosa e verso por discursos proferidos, modéstia de lado, obrigado, este vosso criado agradece. Resta-me discursar aqui, portanto — e o que dizer do casal? Digo que A.D. e A. têm sorte de terem se encontrado: ambos têm qualidades pessoais que se somam e se fortalecem no encontro (audentis fortuna iuvat). Sim, sorte, porque o mundo é ruído e viver é selecionar ruídos, donde acertar no campo amoroso tem muito de sorte. A manutenção das engrenagens do amor, por outro lado, demanda engenho, arte e diligência, mas tudo isso vem depois da sorte inicial, do cara e coroa fundador, da loteria no caldo primordial dos cosmólogos. Confesso? Confesso: chego a invejá-los (sem sustos: inveja sem malícia, amigos), tão atabalhoado na seara amorosa que sou (eu sei, eu sei, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa). Pois então eu os abençoo: haverá filhos, saúde, sucesso, charutos (agora dependentes de autorização uxória, por supuesto) e, velhinhos, eles receberão sempre a minha visita tumultuada, falante, discursiva e operística (e terão de salvar os netos das minhas bengaladas de velho sem peias). E saibam: sou homem de sucesso ao menos numa área, a de apadrinhamentos diversos, que o digam o J.R. e a R. (Aliás e por fim, para quem já os ‘casou’ numa tabacaria de São Paulo, altos e animados os espíritos dos amigos ali reunidos, este apadrinhamento é, digamos, uma obrigação natural que honrosamente me cabe). Apadrinhados estão. Omnia vincit amor, et nos cedamus amori.”
Só aí acima há umas dez histórias sobre as quais você terá de pedir explicações um dia, Emiliana, a seus pais. E lembre-se: foi uma honra abençoar J. e R. e A.D. e A. porque a honra vem da precedente lealdade. Lealdade e alegria, Emiliana (quanto a mim, continuo atabalhoado na seara amorosa, mas F. vai me corrigindo e me aprumando). Mais, mais: você terá o azar de também receber sempre, Emiliana, “a minha visita tumultuada, falante, discursiva e operística” — prepare-se!
12.
Não sei, Emiliana, que mundo será o seu; sei, contudo, que desejo profundamente que… não, não só desejo, mas prenuncio com todas as minhas forças que ele será como o meu e o de seus pais, repleto de pessoas distintas a quem você aprenderá a amar e que a acompanharão na jornada extraordinária que a todos nos cabe; mais ainda, um dia, e este é o dia que mais anseio que seja “um dia”, de algum modo saberei que você retomou esta carta, lida antes com alguma preguiça, e percebeu aquilo que o meu pouco engenho e a minha pouca arte (de novo…) não conseguiram bem exprimir, compreendendo então o que estas palavras não transmitiram mas deixaram transparecer, e você mais tarde, muito mais tarde, haverá de fazer a sua própria narrativa para a filha de amigos queridos seus, uma nova “Emiliana”, e assim, escrevendo “Não sei, Emiliana, que mundo será o seu”, você estará perpetuando o que vivemos aqui, antes de você nascer e mesmo antes de nascermos eu, seu pai, sua mãe e todos os amigos nossos, e brotará em você, como brota em mim agora, a sensação de que é possível que a vida tenha algum sentido. Não sei, Emiliana, que mundo será o seu, mas ele será seu, já escrevi antes, por direito de nascença e, pelo que chegar a você do passado, igualmente por direito de conquista. O mundo, Emiliana, será seu.
Do seu
Marcelo (“Tio”? Bem, o título decidimos depois…).
(Assinando esta carta, lembrei-me agora: também gosto de brincar com letras e com uma coisa que dará algum trabalho a você, “caligrafia”, uma bonita palavra para algo também muito bonito e humano: dar forma, com as próprias mãos, a tracinhos que mostram o que pensamos e sentimos — “um dia”, Emiliana, você entenderá…)