Rudyard Kipling (1865-1936) foi um homem muito à frente de seu tempo. Iconoclasta desde sempre, Kipling foi um revolucionário da literatura do começo do século 20 ao saber conferir a seus textos a fluidez da narrativa curta sem abdicar da profundidade, explorando temas desabridamente fantasiosos que de tão improváveis passavam ao largo da vontade — e do alcance — de muitos de seus pares. Era justamente por meio de alegorias construídas com esmero digno de alguém que poderia ter se dedicado a qualquer ramo da ciência que o escritor, britânico nascido em Bombaim quando da dominação da Índia pelo Reino Unido, que Kipling chegava ao coração de seu público, frequentemente composto de crianças e adultos que não se conformavam em ter de sufocar seu lado menos óbvio e mais sonhador. Nas entrelinhas, o autor deixava claras suas posições: defendia a presença britânica na Índia em nome da “civilização”, da difusão das artes e da cultura a quem parecia alijado do mais básico de que precisa o espírito do homem para não sucumbir as armadilhas do pragmatismo da vida como ela é.
Um dos legados mais vistosos de Kipling à humanidade é “O Livro da Selva” (“The Jungle Book”, 1894), compilação de sete contos publicados na imprensa entre 1893 e 1894. Concebido ao longo de sua estada em Vermont, no nordeste americano, o livro do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1907, aos 41 anos — o mais jovem laureado até hoje —, se derrama sobre aquele que seria o mais popular dos tipos criados pelo autor. Mogli, ou Mowgli, na grafia original, protagonista das três primeiras histórias da publicação, é um garoto indiano que não só sobrevive a um possível ataque de lobos selvagens como torna-se parte da alcateia. Como sói acontecer, o texto de Kipling foi apropriado pela Walt Disney Company e convertido em desenho animado em 1967. No Brasil, “O Livro da Selva” só passou a ser conhecido massivamente em 1933, quando a Companhia Editora Nacional o levou ao prelo pela primeira vez, traduzido pelo taubateense Monteiro Lobato (1882-1948) como “O Livro da Jângal”. Rudyard Kipling morreria cerca de três anos depois, aos setenta recém-completados, alquebrado pela perda dos filhos Josephine e John, em momentos distintos de sua vida, particularmente rica de altos e baixos.
Decerto experiências assim influenciaram Kipling nos relatos sobre seu personagem mais famoso. Desdita, abandono, solidão, existe um pouco da glória e da amargura da vida do poeta nos registros pessoais do seu tempo, absorvidos com delicadeza louvável por Andy Serkis em “Mogli — Entre Dois Mundos” (2018), sem dúvida a interpretação mais sombria da obra do escritor britânico, composta num distante século 19 que se rendia aos maneirismos do novo tempo que se avizinhava, cenário não muito propício a sua elegância sóbria. O diretor, compatriota de Kipling, capta o espírito de um homem que enxergava a dor da rejeição pelo prisma da beleza de um encontro insólito. E a vida se nos apresenta exatamente assim em muitas circunstâncias, como que colocando à prova nossas inclinações à felicidade e ao seu contrário, o ser só. Poucos artistas souberam tirar do armário os incontáveis esqueletos comodamente ignorados pela sociedade de forma tão objetiva e tão cavalheiresca.
O roteiro de Callie Kloves não foge muito ao original de Kipling, e nem poderia. Rohand Chan dá vida e graça ao pequeno herói do filme de Serkis rodeado por feras criadas pela numerosa equipe responsável pela computação gráfica. Talvez o grande atrativo do trabalho de Serkis — para espectadores anglo-saxões — esteja na escolha de estrelas do primeiro time para dublar os animais que “contracenam” com Chan, a começar pelo próprio diretor, um urso Baloo que casa muito bem com as lembranças ainda vívidas de quem assistiu à produção da Disney algumas décadas atrás (mesmo com o forte sotaque cockney, do subúrbio leste de Londres). É com Baloo que Mogli chora a mágoa de ter perdido os pais, devorados por Shere Khan, o tigre que ganha a voz de Benedict Cumberbatch, quando ainda era um bebê. Nisha e Vihaan, os lobos interpretados por Naomie Harris e Eddie Marsan se apiedaram do menino e resolveram criá-lo, depois do beneplácito de Akela, o lobo mais sábio da matilha, vivido por Peter Mullan. À medida que cresce, Mogli é confrontado com a verdade inescapável de não pertencer àquele ambiente, o que fica ainda mais claro depois que toma uma atitude vista como execrável pelos bichos de seu grupo, mesmo que para mantê-los a salvo do ataque do vilão de Cumberbatch. Antes da sequência que mostra o personagem-título migrando das profundezas da selva indiana para o convívio com outros seres humanos, a adaptação de Kloves se esmera, ajudada pela fotografia de Michael Seresin, a compor o embate quase mortal entre Mogli e Kaa, a píton que encarna o conhecimento das coisas do mundo e das que não se deixam ser capturadas, vidente do passado e do futuro, alegoria de Kipling sobre o mal e o bem presentes em todas as formas de vida a habitar a Terra. Capitaneadas, claro, pela natureza humana.
O desfecho alude à promessa de paz em que Kipling buscara crer ao longo de toda a vida, abrindo uma lacuna para divagações sobre se Mogli terá se saído bem longe dos seus. Talvez, até porque o homem é seu próprio lobo.
Filme: Mogli — Entre Dois Mundos
Direção: Andy Serkis
Ano: 2018
Gêneros: Aventura/Fantasia
Nota: 8/10