“A Filha do Coveiro” (Alfaguara, 599 páginas, tradução afiada de Vera Ribeiro), obra-prima de Joyce Carol Oates, é um romance que exibe a beleza (Rebecca Schwart, a música de Beethoven) cercada por imensa dor (nazismo alemão, intolerância americana, violência familiar). Uma tragédia grega, contada por uma Dostoiévski que veste saia, com uma espécie de redenção, mas não religiosa, e sim terrivelmente humana.
Numa entrevista ao “El País”, Oates explica como construiu o romance. Em maio de 1986, seu pai, septuagenário, conta-lhe, casualmente, um segredo de família guardado a sete-chaves: a história de seu avô Morgenstern que, depois de atirar na mulher, matou-se com um tiro. Blanche Morgenstern, a filha do casal, estava no mesmo recinto. O bisavô de Oates era coveiro. No livro, a única pista dada pela escritora está na dedicatória: “Para minha avó, Blanche Morgenstern, a ‘filha do coveiro’”.
Posta a informação, o leitor pode pensar que se trata de uma biografia e não de um romance, o que não é, porém, certo. “A Filha do Coveiro” é uma bela obra de ficção, mas, como é baseada em fatos, explicados e adensados pelos amplos recursos da ficção, que cria vida onde os documentos e a memória falham, a própria Oates explicou-se na entrevista ao “El País”. “A ficção e a autobiografia — que amiúde é uma memória semificcionalizada — são meios para explorar o passado. É preciso imaginar, mas não inventar; se há invenções, ficção pura, isso deve brotar do real, do que verdadeiramente ocorreu”, disse Oates. “Enfrentei a história assombrosa da vida de minha avó, mas não podia apropriar-me dela diretamente porque não sabia realmente nada de primeira mão. Só podia chegar a ela de forma elíptica e por intermédio da arte. Ainda assim penso que a voz que imaginei para minha avó reflita de forma exata a simpatia, o pathos e a notável resistência de sua vida desconhecida”, acrescenta a prosadora.
O leitor do romance efetivamente não precisa saber que a história de Oates é baseada em fatos — ficcionalizados para serem iluminados, porque o real sem um pouco de luz extra, das cores da ficção, digamos assim, perde a graça — para entender que se trata de uma história poderosa.
Fugindo dos amplos tentáculos do nazismo de Hitler, o casal Jacob e Anna Schwart chegam aos Estados Unidos, com três filhos, Herschel, o mais velho, August (Gus) e a caçula Rebecca, que, nascida no navio, é cidadã americana. Rebecca é Blanche Morgenstern, a avó de Oates.
Na Alemanha, Jacob era professor de matemática e lia filósofos, como Hegel e Schopenhauer, e Anna tocava piano e amava a música de Beethoven. Um casal judeu de classe média. Nos Estados Unidos, desenraizado, Jacob consegue apenas o emprego de coveiro, em Milburn.
Não era uma vida fácil, e alemães naquele tempo, mesmo não nazistas e mesmo judeus, eram execrados pelos norte-americanos, especialmente os jovens. Para proteger a família, Jacob tentou isolá-la do mundo. Proibiu a mulher de falar alemão e obrigou os filhos a não terem amigos. Era como se tivesse inventado seu próprio gueto. Moravam numa casinha suja e velha no interior do cemitério. Não raro a casa e túmulos eram pichados com a suástica nazista. Jacob ficava horrorizado e tentava apagar a presença ostensiva da intolerância americana.
Um dia, Jacob compra um rádio, mas não permite que ninguém da família o ligue. Só o coveiro pode ouvir as notícias, que o irritam quando tratam das vitórias de Hitler. Quando Jacob sai, Anna às vezes chama Rebecca para ouvir música erudita — o que, mais tarde, vai marcar a formação do filho de Rebecca.
Quando Herschel e Gus saem de casa, fugindo da tirania do pai, tirania com a qual acreditava que protegia sua família, Jacob, talvez por julgar que perdeu o controle da família e por não ter cumprido a promessa de uma vida melhor para todos, mata a entorpecida Anna e se mata. Rebecca fica viva, aparentemente porque, sendo americana, nada se poderia fazer contra ela, na visão do pai, uma vítima tardia do nazismo e de seus próprios medos.
Com a morte do pai, Rebecca renasce, por assim dizer. Mas, antes de se tornar adulta, mora na casa de uma religiosa, a professora aposentada Rose Lutter. Rebecca sai de casa, ainda menor, por não suportar a carolice da tutora.
Junta-se a amigas e começa a trabalhar num hotel, como camareira. Aí, de certo modo, descobre o mundo. Um hóspede tenta estuprá-la e outro hóspede, Niles Tignor, a protege.
Tignor, homem forte e imponente, conquista o coração de Rebecca, uma garota durona de 17 anos. Casam-se. Tignor, conquistador inveterado, diz que é representante de uma cervejaria e, no início, carrega Rebecca por várias cidades americanas. Depois, instala-a, grávida, numa casa velha de fazenda. Para ter o filho, Niley, Rebecca precisa da ajuda de vizinhos para levá-la ao hospital. Tignor estava no mundo e, como não lhe dava mais dinheiro, Rebecca teve de trabalhar na fábrica Tubos de Fibra Niágara. Um trabalho duro, mas necessário.
Com o tempo, Tignor perde o viço e o emprego, envolvendo-se com criminosos. Torna-se ciumento e violento. Espanca brutalmente Rebecca e o pequeno Tiley. Para sobreviver e, sobretudo, salvar o filho, a corajosa Rebecca espera Tignor dormir e foge.
Para escapar de Tignor, e talvez de sua própria história familiar macabra, Rebecca mora em várias cidades dos Estados Unidos. Numa das cidades, consegue mudar seu nome e o de Niley. Ela passa a se chamar Hazel Jones e Niley se torna Zacharias August Jones. Os dois reinventaram-se, para sobreviver e seguir novo caminho.
Numa das cidades para onde se mudam, Rebecca-Hazel conhece o pianista de jazz e jornalista Chet Gallagher, filho de uma espécie de Roberto Marinho dos Estados Unidos.
Chet descobre que Zack é apaixonado por piano e financia seus estudos. Sob orientação de um professor judeu, Zack desenvolve seu talento. Hazel casa-se com Chet, mesmo sem amá-lo. Bonita e sensual, Hazel é uma presença iluminadora — há um quê de fantasmal ou mágico nesta personagem sólida como uma rocha.
O virtuose Zack encanta a todos no mundo do piano. Hazel fica feliz com o sucesso do garoto, como se fosse um presente tardio à sua mãe que, no pardieiro do cemitério, levou-a escutar a música “Appassionata” de Beethoven tocada por Arthur Schnabel. Num raro momento de intimidade, a lacônica Anna diz para a garota Rebecca: “Quando eu era menina, na minha velha terra [Munique, na Alemanha], tocava essa ‘Appassionata’. Não como o Schnabel, não tocava, mas tentava”. Sem o saber, ao tocar “Appassionata”, Zack arrancou Anna do túmulo e restaurou o tempo perdido. Um pedaço de Rebecca, que havia sido amputado na infância, pode ser instalado em seu corpo.
Quase no final, há dois momentos dilacerantes. Gus vê Rebecca, mas esta finge que não o conhece, porque já era a rica e protegida Hazel Jones e não queria que o passado voltasse a assombrá-la — mais do que sua memória implacável a atormentava. Depois, descobre que Freyda, a prima que julgava morta pelo nazismo, é uma cientista famosa, autora de uma autobiografia na qual conta a história de sua família num campo de concentração e extermínio. Freyda esnoba a prima e, quando decide encontrá-la, é muito tarde. Rebecca-Hazel, com câncer, não tem mais condições de se comunicar.
Freyda escreve numa carta aquilo que talvez resuma o romance: “Os fatos só são ‘verdadeiros’ depois de explicados”. Fiz uma síntese pálida do romance, mas nada disse sobre a forma poderosa e sutil de Oates narrar sua bela e dolorosa história. A linguagem do romance é, de certo modo, sua mais poderosa “personagem”.