Novo filme da Netflix vai pacificar seu espírito, acalmar sua alma e melhorar o seu dia Felicia Graham / Netflix

Novo filme da Netflix vai pacificar seu espírito, acalmar sua alma e melhorar o seu dia

O passar do tempo não é garantia de nada. Sócrates (470 a.C.-399 a.C) foi quem primeiro cantou a bola da inutilidade da velhice ao elaborar o pensamento que reza que quanto mais os anos se sobrepõem uns aos outros, mais o homem se dá conta de sua abissal ignorância — o homem sensato ao menos —, sem mais dispor de toda aquela gordura para queimar, sem conseguir reacender a chama fria da curiosidade frente ao desconhecido, ao novo, à vida mesma e aprimorar o espírito. A morte ronda o gênero humano como moscas à volta de um acepipe cheio de creme (mas com notas pronunciadamente amargas), e antes ainda da morte, é o acaso quem se insinua sem pejo a gente de todos os sangues e todas as culturas. É com o acaso que temos de nos haver todo santo dia, ansiando por escapar de suas armadilhas, mas à mercê também de desfrutar de suas repentinas indulgências e viver momentos que, por mais fugazes que venham a ser, legitimam toda uma jornada. Talvez o maior perigo de se ser jovem seja precisamente este: discernir, muitas vezes no espaço de um instante, em que circunstância o inesperado da vida está a nosso favor ou apenas se mascara com os panos coloridos da ilusão para nos ver ir ao fundo.

A queniana Wanuri Kahiu despontou na indústria cinematográfica mundial graças a “From a Whisper” (2009), com que venceu o African Movie Academy Award em cinco categorias, incluindo a de Melhor Filme e Melhor Diretor. Em “Como Seria Se…?” (2022), a diretora cristaliza a força de seu talento com um enredo sobre as desventuras de uma mulher em busca de autoconhecimento, e que justamente por isso toma decisões que, embora compreensíveis, podem despertar uma angústia invencível não muito tempo depois. Unindo os argumentos de “De Caso com o Acaso” (1998), dirigido por Peter Howitt, e “Mais ou Menos Grávida” (1988), de John G. Avildsen (1935-2017), o trabalho de Kahiu é muito mais objetivo, com franco predomínio de conflitos resolvidos até com certa frieza. A sensação de déjà vu é explorada ao máximo, como se a plateia estivesse num carrossel, presa a situações que poderiam se repetir até o infinito, ainda que o roteiro de April Prosser, muito bem urdido, tenha o condão de levar a crer que algum fato verdadeiramente inusitado está a caminho.

“Como Seria Se…?” é um balão de ensaio da vida de Natalie, a aspirante a ilustradora e diretora de desenhos animados interpretada com um misto de delicadeza e vigor por Lili Reinhart. Na abertura, Natalie surge recém-formada, fazendo planos para dali a cinco anos; à mesma época, de modo completamente leviano, havia ido para a cama com o melhor amigo Gabe, implorando ao personagem de Danny Ramirez que o episódio jamais passasse de uma farra e que continuassem o que sempre haviam sido até então, apenas bons amigos. É esse o gancho para que Kahiu movimente a narrativa valendo-se do conceito de realidade paralela: na festa oferecida aos formandos, a mocinha e Cara, a escudeira fiel vivida por Aisha Dee, aparecem trancadas no banheiro, à espera do resultado de um teste de gravidez. Imediatamente, a tela se divide em duas e por trás de cada uma delas o público vislumbra o destino da personagem central se ela opta por conduzir sua vida de um ou outro jeito, criando seu bebê sozinha, uma vez que rejeita a proposta de casamento de Gabe, morando de favor num quarto improvisado na casa dos pais, ou seguindo para Los Angeles rumo a uma aventura que pode dar em nada, mas necessária para que se afirme como dona do próprio nariz.

Em ambas as conjunturas Natalie enfrenta seus percalços com dignidade, submetendo-se a uma ou outra humilhação de vez em quando. Se por um lado a vida como uma agregada na casa dos pais, boas atuações de Luke Wilson e Andrea Savage, é um tormento, por outro, a jornada na Cidade dos Anjos não tarda a se revelar um inferno. Na primeira sequência em que é mostrada tentando se ambientar ao mundinho abafado de Hollywood com seus milhares de festas em que ninguém se conhece (e não faz disso a menor questão), a anti-heroína aparece se arriscando a ser barrada no baile. Penetra, incentivada por Jake, o tipo meio ensaboado de David Corenswet, que cola na garota até que os dois se tornam amigos e namorados não muito tempo depois. O arco dramático do personagem de Corenswet, bem como o de Cara e mesmo o de Gabe em certa medida, restam meio capengas. Prosser põe todos os ovos na cesta de sua protagonista, até forçando a barra quanto a reforçar as cabeçadas de Natalie no mundo corporativo, vítima de Lucy, a cineasta de longas de animação e live action de Nia Long, antes um ídolo, agora uma chefe abusiva.

Por óbvio, o final é feliz. “Como Seria Se…?” parece juntar as duas possibilidades na trajetória de Natalie, ela torna-se uma profissional bem-sucedida, fica com seu grande amor e os demais personagens simplesmente desaparecem, deslize grave numa história que parecia tão plural. O filme tem passagens luminosas, com menção a desenhos icônicos como “A Viagem de Chihiro” (2001), do japonês Hayao Miyazaki, que dão alma a um produto eminentemente comercial. Coisa muito adulta, como diria uma outra personagem de um outro desenho.


Filme: Como Seria Se…?
Direção: Wanuri Kahiu
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Drama/Romance
Nota: 8/10