Romance de Alex Andrade se sustenta na construção de sua protagonista

Romance de Alex Andrade se sustenta na construção de sua protagonista

Se ainda existe algum ruído acerca dessas polêmicas que volta e meia surgem no meio literário sobre quem pode escrever sobre o quê, “Para os que Ficam” é a prova definitiva de que sensibilidade criativa e domínio técnico superam qualquer coro de regra.

Bastam não mais que duas páginas, para o leitor ser totalmente atraído pela veracidade de sua protagonista, uma mulher de meia-idade de voz e personalidade magnéticas, refém de conflitos de fácil identificação. Seu criador, o carioca Alex Andrade, mostra que talento literário é a única concessão para retratar quem quer se seja numa trama ficcional, elegendo a (des)construção de sua personagem como estrela de seu novo livro.

Ana é quem controla a tessitura da história. Agente ao mesmo tempo que testemunha dos fatos, sua narração entrecruza curso do presente e trânsito de pensamentos dentro do espaço limitado da casa, no tempo do agora e do antes no contexto de um drama familiar. Sua vida se resume a cuidar do pai que passou de noventa anos e existe entre lapsos de lucidez e períodos de senilidade, presa a uma rotina de consultas, exames, horários de remédios e tarefas domésticas. Tem dois irmãos mais novos que se mantêm distantes e raramente telefonam. Coube a ela a renúncia de si para assumir o posto permanente de filha, drenada de toda energia a ponto de não mais reconhecer se está “exausta do mundo” ou se seu “estado letárgico se acentua cada vez mais”.

Ainda assim, não há qualquer gosto autocomiserativo ou melodramático em seu relato. Longe disso. A personagem passa o dia se alimentando de cigarro e em busca de um gole de cerveja, faz observações ácidas, zomba de sua condição. “Penso em parar de fumar, mas acho que estou velha para esquecer antigos hábitos.” O texto consegue um equilíbrio de tom transitando de um humor a outro de maneira intuitiva, sem apelar pela óbvia estrutura dos módulos dissonantes. Mesmo quando vai fundo na sensibilidade, a abordagem não dissenti do comportamento narrativo, sendo comovente pela circunstância e não pelo esforço das palavras. Assim é, por exemplo, quando se narra o momento do banho, do pai envergonhado de estar nu diante da filha, da fragilidade e dos silêncios mútuos. As pausas têm papel importante. Um vazio que transborda significados.

Nestas zonas cinzentas, Ana aprisiona seus segredos e desejos reprimidos, especialmente aqueles relativos a Jota, um codinome que, a princípio por motivos implícitos, desperta sentimentos dúbios de atração e de repulsa. Seria um caso amoroso que ficou para trás? Alguém que deixou uma ferida aberta? As revelações ocorrem em manifestações sutis, sem afobo, concordante com a tecedura remansosa que se atém em fabricar camadas para as atitudes e as motivações dos atores da trama, usando reiterações de modo inteligente para estabelecer os pontos fundamentais de apreensão do enredo. Tudo leva a crer num progressivo insulamento da narradora, no qual todo reencontro com o mundo exterior vai ficando impossível, e a escavação da memória será a saída para lidar com a imobilidade causada pelo fardo da dependência do pai.

Até que um acontecimento inesperado desfigura de maneira radical a aparência narrativa. A partir daí, a metade final será a contraparte selvagem dos primeiros capítulos. A história mental assume por completo o comando da trama, o ritmo ganha tensão e velocidade, a narrativa se fragmenta e um trânsito frenético de lembranças e confissões dão conta de um passado marcado por agressões, descontroles, mágoas profundas e autoenganos. Um paralelo ilustrativo pode ser feito com a protagonista de “A Paixão segundo G.H.” depois que encontra a barata. É uma virada de chave sintonizada ao surto que pode muito bem ser interpretada como o descarrego de todo o peso que a personagem suportou, calada, por anos, mas também como uma mudança abrupta de rumo para se alcançar um clímax com atalhos sensacionais. Sim, é uma solução que vai dividir os leitores, ainda assim que não pode ser taxada de incoerente, pois faz todas as conexões previstas e, principalmente, ressoa a carta aberta referida no título.

Tudo resulta e se sustenta na voz, afinal. E Andrade entende que a força do silêncio é a mesma do grito, variando escalas e achando outras personagens na ficção e fora dela de modo a reproduzir uma cacofonia que represente o afogo das mulheres tolhidas do direito da liberdade. Ana torna-se muitas sem deixar de ser original em decorrência do poder de atração de seu testemunho, de uma escrita que ativa a cumplicidade do leitor desde cedo, fazendo-o experienciar o processo de ruptura de quem bota para fora tanta coisa guardada e expulsa o passado para explicar o presente, ainda que seja incapaz de mudá-lo. Um mergulho na composição do íntimo, possível apenas para os escritores que entendem que, na literatura, é preciso primeiro se construir o barco para se erguer a bandeira.


Livro: Para os que Ficam
Autor: Alex Andrade
Editora: Confraria do Vento
Páginas: 160
Avaliação: 3.5/5