Coisa de doido

Coisa de doido

O garoto espevitado vivia perguntando sobre tudo. Curioso nato, queria saber sobre o funcionamento das coisas, o tamanho dos continentes, nomes de países e cidades distantes, animais e máquinas, a História, Geografia, enfim, tudo que o cercava. Alinhava perguntas umas nas outras e ia extraindo respostas para tudo o que aquela cabecinha avoada queria saber. No geral, a vítima preferida era o pai, que pacientemente explicava ou tentava explicar tudo que o inquisidor-mirim queria. Mas, neste dia em especial, outra pessoa foi pega totalmente desprevenida: — Mãe, quem é esse aqui? Na mão infantil, um jornal de alguns meses passados (ele tinha disso, de achar revistas, jornais ou qualquer outro tipo de material impresso e ficar lendo coisas antigas e desatualizadas. Explicava que não se importava com datas e se estava lendo é porque queria saber), mostrava a foto de um homem robusto, metido em um terno caro, com um bigode enorme e fazendo pose de sério.

— Ah, esse cara é o Jô Soares.

— E o que ele faz, mãe?

— Bom ele é, ele faz… — a mãe não era a típica “telespectadora”; não gostava nem de novela, que dirá de programas de humor — Ah, ele é desse povo doido da tevê!

Um brilho rápido e maquiavélico transpassou o olhar do pequeno psicopata enquanto pegava o rumo porta afora. Um momento de escolha e decisão. Lembrou-se do quanto havia rido dos trejeitos do humorista nos programas de segunda à noite, os diferentes tipos que se apresentavam, das piadas e tudo o mais. Deixasse para os primos aqueles sonhos convencionais de ser bombeiro, jogador de futebol, astronauta ou afins. Havia decidido naquele momento o queria ser.

— Lilico, sabe o que eu quero ser quando crescer?

— Fala, seu.

— Eu quero ser doido.

— Doido?

— É, igual àquele povo da tevê…

— Tá no caminho certo. Pirou de vez.

A partir dali, sempre que passava em frente ao Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, aquele que ficava um pouco abaixo do Parque Agropecuário, no trajeto diário que fazia para o colégio, parava um pouco, tentando ver algo por entre as janelas gradeadas, distantes dos grossos e altos muros do lugar.

 — Deve ser ali que o pessoal da tevê ensaia. Povo danado de inteligente esse…

E dá-lhe imaginar o que eles estariam aprontando ali dentro. Tudo bem, na próxima segunda veria quais seriam as novas armações daquela turma. O dia demorava a passar, a semana demorava a passar, o fim de semana se arrastava devagar contra aquela vontade de tudo acabar rápido e então…

Então era domingo de noite e não era mais preciso ter pressa. Primeiro porque tinha os Trapalhões: Dedé, Didi, Mussum e Zacarias encantando a garotada com suas confusões e aventuras. Daí o relógio podia andar um pouco mais desacelerado. Até porque depois vinha o Fantástico, Cid Moreira e sua voz cavernosa informando mais um anúncio do fim do mundo. Ok, tinha o Léo Batista com os gols da rodada e aquela zebra idiota da loteria esportiva, mas isso não amenizava muita coisa; o menino espevitado tinha medo do Fantástico desde que ouvira que um tal de “Iscailabe” iria cair dos céus, muito tempo antes. Matutava este tipo de coisa, rindo sozinho, quando sentiu que alguém seguia do seu lado, cadernos apertados contra o peito, passinhos curtos, cheiro de lavanda no ar: Maria das Graças sabia como chegar do seu lado sem despertá-lo seus sonhos.

— Que cara de bobo é essa?

— Nada, tava pensando umas coisas aqui. O olhar da menina brilhou: — Tinha a ver comigo?

— Só se você fosse doida.

— Como é que é?

— Doida, minha filha. Doidinha da silva.

Não entendeu a cara de repugnância que a candidata à primeira namorada fez: — Um dia ainda vou estar dentro destes muros — apontava para o hospital psiquiátrico.

— Você quer ser médico, enfermeiro?

— Não, doido mesmo.

— Hã?

— Doido, sabe? — ao ver a menina desistindo da candidatura, ainda gritou para ela, que agora já atravessara a rua — Mas é daquele tipo que trabalha na tevê!