Os herdeiros selvagens de Ibsen

Os herdeiros selvagens de Ibsen

Nas voltas que o mundo dá, saíram recentemente no Brasil dois romances que beberam na fonte do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), um dos melhores escritores do mundo no século 19. O autor desenvolveu sua carreira às margens dos grandes centros europeus e fez a transição do clássico realismo para o modernismo, em peças como “O Pato Selvagem” (1884) — um drama até hoje inclassificável.

É nessa obra de Ibsen que o também norueguês Dag Solstad e o austríaco (nascido na Holanda) Thomas Bernhard foram se inspirar para a escrita de “Pudor e Dignidade” (1994) e “Derrubar Árvores — Uma Irritação” (1994), respectivamente. Os personagens centrais, creio eu, retomam a grande questão ibseniana, conforme notado por Franco Moretti no teatro do norueguês: “Afinal, o que você trouxe ao mundo?”.

Em “O Pato Selvagem”, o personagem Gregers volta à casa de seu pai, Werle, dono de uma indústria. Lá reencontra o amigo Hialmar Ekdal, filho de um antigo sócio falido de sua família em negócios. Hialmar está casado com Gina, ex-empregada da casa dos Werle. A filha deles, Hedvig, é uma adolescente de 14 anos que vai se revelando o centro da impressionante história familiar. O final só pode ser trágico.

Pudor e Dignidade, de Dag Solstad (Numa Editora, 158 páginas)

Franco Moretti bem observou que os conflitos de Ibsen ocorreram dentro das classes altas da sociedade norueguesa, não havendo espaço para embates de ricos com pobres, como no grande drama realista. As tramas caminham para zonas cinzentas, nebulosas, meias verdades, como as que serão desvendadas por Gregers em “O Pato Selvagem”. É um teatro novo que aponta para os questionamentos e impasses do século 20.      

O universo de Ibsen é justamente o ponto de partida do romance “Pudor e Dignidade”, de Dag Solstad, publicado no Brasil em 2020. No livro, o personagem Elias Rukla é um professor de ensino médio que dá aulas de literatura norueguesa há 25 anos e, de repente, tem uma ideia jamais pensada sobre a peça “O Pato Selvagem”. A revelação está no papel de um personagem secundário da história ibseniana.

Mas a descoberta leva o professor de 50 e poucos anos de idade a ter um surto, diante dos alunos e demais professores da escola. Ele destrói um guarda-chuva na frente de todos. Teme ser demitido e enfrentar a reação da esposa Eva Linde, de 47 anos. Ele sempre a considerou a mulher mais bela do mundo (“uma beleza quase irreal”, segundo ele, mas que está fenecendo). Em sua visão, o mundo fenece.

A narrativa mergulha então na cabeça de Elias. Num livro curto (150 páginas), o leitor é atingido pela avalanche de pensamentos: as memórias a partir dos anos 1960, a vida de professor, a banalidade do mundo, o envelhecimento e a solidão de uma pessoa por não ter com quem conversar sobre assuntos de seu interesse. O personagem passa a vida e o planeta em revista numa simples caminhada de volta para casa.

Um dos precursores de Solstad é Thomas Bernhard, que tem o seu clássico “Derrubar Árvores” reeditado agora no Brasil. Antes, o livro havia saído com o título de “Árvores Abatidas”. A história parece simples: o narrador é um austríaco que retorna a seu país após uma ausência prolongada. Para seu azar e rancor, é convidado para um jantar na residência do casal Auersberger, por quem guarda um profundo desprezo.

Derrubar Árvores: Uma Irritação, de Thomas Bernhard (Todavia, 192 páginas)

O principal convidado é um ator que está encenando em Viena a peça “O Pato Selvagem” de Ibsen. O que o narrador faz em seu monólogo, é uma análise impiedosa e obsessiva dos artistas e das pessoas de Viena. Não sobra nada em pé, tudo é descortinado. Aquelas pessoas não trouxeram absolutamente nada ao mundo. Como sempre, Bernhard fez questão de chocar e expor o grotesco dos seus compatriotas.

“Fazia vinte anos que não queria mais saber do casal Auersberger e fazia vinte anos que não os via, vinte anos ao longo dos quais até mesmo a menção de seu nome por terceiros me provocava náuseas, pensei ali na poltrona de orelhas, e agora o casal Auersberger me confrontava com os anos cinquenta, os deles e os meus”, pontua o narrador de “Derrubar Árvores”, no típico mal-estar das histórias de Bernhard.  

O austríaco foi um autor avesso a qualquer complacência com o ser humano. Não havia mais salvação ou redenção para seus compatriotas que, a certa altura da História, se entregaram aos nazistas. A eles, Bernhard só poderia direcionar sua escrita da perturbação e da irritação, como deixou claro no seu livro de memórias, “Origem”:

“Minha existência sempre perturbou, o tempo todo. Sempre perturbei e sempre irritei as pessoas. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha existência nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas. Porque chamo a atenção para fatos perturbadores e irritantes. Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço”.