Não é de hoje que Hollywood reinventa clássicos da literatura e da cultura popular que se propagam ao longo dos anos. Em 1937, Walt Disney (1901-1966) encarregou sua equipe de preparar a releitura de um dos contos mais famosos dos irmãos alemães Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), com todos os recursos tecnológicos disponíveis à época. A partir de então, “Branca de Neve e os Sete Anões” estaria para sempre eternizada no inconsciente coletivo, embalando gerações de cinéfilos que virariam também leitores. A personagem é responsável por, inicialmente, despertar em crianças de todo o mundo o gosto por sonhar, ao passo que a história em si, plena de metáforas que só podem ser devidamente absorvidas muitos anos depois, reúne lições para gente de todas as idades. O mundo em que habita Branca de Neve é muito parecido ao ambiente em que estamos nós agora, na terceira década do século 21: há soberanas más que sabotam o reino a que ascenderam mediante a chancela ingênua de quem não sabe em quem acreditar; subalternos que cumprem ordens indecorosas, tentando dar cabo do último fio de esperança; e, por óbvio, a figura que personifica o bem e que, acuada por tanta vileza, perde-se numa floresta de desenganos.
Mais de sete décadas desde o lançamento da versão mais conhecida de uma história infantil para o cinema, Rupert Sanders, como recomendava Disney, abusa dos efeitos especiais ao recriar a lenda da princesa de pele alva, lábios encarnados como sangue e cabelos negros feito a plumagem de um corvo e prova com “Branca de Neve e o Caçador” (2012) que, lançando mão de algumas adaptações e somando mais drama, realismo e mordacidade a um enredo meio gasto, o mito da heroína ainda pulsa. Se existe uma qualidade que se destaca no trabalho de Sanders é a habilidade em lidar com baluartes da cultura pop sem a menor preocupação em manter o tom reverente, e nem por isso queimar as pontes com o que já foi apresentado ad nauseam, no cinema ou fora dele. Que ninguém espere a reinvenção da roda, contudo: aqui, a princesa enxotada de seus domínios reserva para a madrasta sentimentos nobres como pena e permanece casta até o fim, ainda que sondada por dois galãs.
O espírito monocórdio de Bella Swan decerto foi de grande valia para que Kristen Stewart incorporasse essa aura da mocinha romântica dos folhetins de Alexandre Dumas, Pai (1801-1870) na França do século 19, malgrado seja evidente o ar medieval da história. A Branca de Neve de Stewart também passa boa parte da vida numa masmorra a mando da segunda mulher de seu pai depois que ele morre, envenenado e a golpe de punhal certeiro. Charlize Theron continua a usar da beleza e do carisma magnético mesmo que sua rainha Ravenna não renda o esperado, e o trabalho da equipe de computação gráfica liderada por Vince Abbott deixa mais que claro o porquê do hábito de aprisionar donzelas frescas ao longo de sua vida de perversões. Com a ajuda de um pássaro, insólita, mas providencial, vislumbra um meio de fugir do calabouço no momento em que começa a ser molestada sexualmente por Finn, o irmão de Ravenna vivido por Sam Spruell — e o roteiro de Evan Daugherty, Hossein Amini e John Lee Hancock, por evidente, não dá vazão a todo o potencial da cena. Depois de uma jornada particularmente difícil, em que o texto dos roteiristas dispõe de um argumento escatológico como se não houvesse amanhã (e eles voltam à carga no segundo ato), a protagonista chega finalmente à Floresta Negra, para onde parte o caçador de Chris Hemsworth, em seu encalço.
O arco dramático de um envolvimento amoroso de Branca de Neve não atinge o clímax, nem com o personagem de Hemsworth nem com o príncipe William, de Sam Claffin, o que margem para falatórios sobre um possível ataque de ciúme de Sanders, então namorado de Stewart. A despeito da fofoca, “Branca de Neve e o Caçador” acerta ao priorizar o tom de saga aventureira da narrativa, dando à história uma aura inesperada de renovação. Cinderela que se cuide.
Filme: Branca de Neve e O Caçador
Direção: Rupert Sanders
Ano: 2012
Gêneros: Fantasia/Aventura/Coming-of-age
Nota: 8/10