Novo suspense da Netflix, baseado em fenômeno literário argentino, prende o espectador do início ao fim Valeria Fiorini / Netflix

Novo suspense da Netflix, baseado em fenômeno literário argentino, prende o espectador do início ao fim

Definitivamente, trabalhar na polícia não é para qualquer um. Lidar com situações extremas; saber se impor, mas também ouvir; usar de sensibilidade, conquanto, da mesma forma, seja preciso ser enérgico, são qualidades cada vez mais raras, mormente nas corporações das metrópoles dos países pobres da América Latina. Não por acaso, a relação entre o ofício e a incidência de transtornos psiquiátricos sempre foi perigosamente estreita e implica o afastamento de muitos profissionais dedicados, gente que um dia viu no expediente policial mais que a oportunidade de ascender socialmente, mas um atalho seguro para o exercício da cidadania e da luta por justiça. Aos poucos, quem julgava ter na carreira de aplicador mais básico da lei, que inclui ainda fiscalizar a conduta tanto do homem comum como dos altos comissários do poder, toma pé dos limites da profissão e acaba enveredando por um de dois caminhos: ou se conforma e atua segundo as pautas do que se verifica no ordenamento jurídico (e marcha resignadamente para a frustração)  ou subverte tudo o que se encontra nos manuais da vida em comunidade, dá vazão a seu lado justiceiro e arca com as consequências.

Mesmo fora da polícia, a vida de agente da lei continua a cansar Manuela Pelari, ou Pipa, a detetive vivida por Luisana Lopilato em “Retorno” (2022). Derradeiro segmento da trilogia “Os Crimes do Sul, composta pelos antecessores “Perdida” (2018) e “Presságio” (2020), baseados nas novelas “A Virgem em seus Olhos” (2012), “A Filha do Campeão” (2014) e Cornelia (2016), da escritora argentina Florencia Etchevs, este terceiro trabalho de Alejandro Montiel prima por conservar a fidedignidade ao texto de Etchevs — corroteirista junto com Montiel e a produtora Mili Roque Pitt —, ao passo que reserva surpresas ao espectador. Aqui, Pipa vive em meio à natureza, no cenário bucólico sem muito em comum com os mostrados nos anteriores. A pacatez de Humahuaca, na província de Jujuy, a 1.500 km de Buenos Aires, ajuda a personagem central a curar os traumas que acabaram por obrigá-la a se desligar da polícia. Montiel se esforça por apresentar Pipa serena, muitos anos depois da aposentadoria precoce e compulsória, vivendo com a tia Alicia, interpretada pela chilena Paulina García — em nada parecida com a fogosa e cosmopolita Glória, personagem-título do longa de Sebastián Lelio, lançado em 2013 — e o filho Tobías, de Benjamín del Cerro. De imediato fica óbvio que Alicia é uma espécie de redentora da sobrinha, que sabia que Pipa só poderia mesmo recorrer a ela. Essa tentativa de mudança de vida, num lugar absolutamente novo, insólito até, longe dos velhos hábitos e de tudo o mais que a fizera tão mal, é frutífera no início; contudo, o passado costuma resgatar as dívidas que julga ainda passíveis de alguma correção, principalmente quando se lidou com tipos marginais num tempo nem tão distante assim. É a deixa para o diretor ir passando ao mote de seu filme com mais objetividade. A morte de uma garçonete indígena que trabalhava na festa dada por Etelvina Carreras, a lider da família mais abastada de Humahuaca vivida por Inés Estévez, descortina um universo de misoginia, corrupção política e da polícia, contratos promíscuos entre a elite local e multinacionais americanas ávidas por explorar as jazidas minerais das redondezas e o desprezo para com os kolla, comunidade pré-colombiana que teima em sobreviver aos desmandos das forças de segurança, devidamente aparelhadas por capangas da personagem de Estévez. Tanta injustiça, por evidente, estimula a anti-heroína a voltar com tudo, o verdadeiro retorno do título. Não muito evidente, todavia, será sua frustração, e mais uma vez Pipa terá de conviver com o peso de escolhas equivocadas, que desta feita ainda respingam em quem só quis mantê-la longe de encrenca.

A fotografia de Guillermo Bill Nieto é o bônus de uma história irretocavelmente conduzida ao destacar os tons pastéis e frios dos ambientes internos em contraste com o sol escaldante do vale de Humahuaca, como se entregasse o desajuste da protagonista naquele cenário. Como se nota, ela era justamente isso, uma desajustada. E uma sonhadora.


Filme: Retorno
Direção: Alejandro Montiel
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Thriller/Policial
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.