Há várias gravidades na literatura de Primo Levi. A começar pela mais evidente — e menos importante, a meu ver — que é a denúncia do horror nos campos de concentração nazistas. Calma que eu explico!
“É Isto um Homem?” é um livro que serve, entre muitas coisas, para documentar a aventura infame que é habitarmos o mesmo planeta de Mc Melody e Anitta e, se não justifica plenamente o mesmo ar que respiramos, ao menos explica a existência de um Vladimir Putin e de um Ernesto Sábato e o fato de os dois pertencerem — pasmem — à “espécie humana” e de, em suma, termos chegado junto com eles e com Zeca Pagodinho neste final de picada onde chegamos.
Antes de “É Isto um Homem?” ser um documento contra a barbárie, é um atestado de sobrevivência da razão humana que, apesar da rivalidade entre Mc Melody e Anitta, conseguiu (e conseguirá, espero que sim) prevalecer. Até mesmo na prostração e na morte.
Depois de ler esse livro, é fácil dispensarmos o sobrenatural ou qualquer outra coisa que queira dar um sentido ou explicação, por exemplo, ao fato de que a vida não tem cura. Levi dá todas as respostas: de onde viemos, quem somos e para onde vamos. Encerra as questões todas, e até o suicídio — depois de “É Isto um Homem?” — tem o seu mistério filosófico esclarecido.
Depois da leitura deste romance, entendi que o compromisso de “dizer”, tomar a atenção do leitor, e contar uma história, é o mais grave de todos. A meu ver, maior do que o próprio holocausto sofrido na pele por Levi.
Foi esse compromisso, ou a coragem de distanciar-se da infâmia, que o fez escrever um livro estupendo. Em nenhum momento Primo Levi teoriza a dor, nunca é autoindulgente, Levi não faz chantagens sentimentalóides, não se vitimiza e, sobretudo, não demonstra qualquer vestígio de ódio nem de revanche, ele fala do ponto de vista da condição humana, jamais do ponto de vista da vítima. Repito: homem e não vítima.
E foi assim que Levi me ajudou a responder a mais difícil das perguntas: por que escrever?
Penso que todo candidato a escritor, e todo sujeito(a) que se ocupa em escrever livros, devia, antes de publicar qualquer coisa, passar por “É Isto um Homem?”. E, somente depois de viver a experiência (significa mais do que simplesmente “ler”), pesar os prós e os contras de interferir através de seus livros na vida de terceiros. O ideal seria que procurasse outra coisa para fazer. Seria o melhor para todos.
Não vou negar que ego e vaidade são fundamentais. Claro que sim. Sem ego e sem vaidade fica complicado até para auxiliar um cego atravessar a rua. O problema é que, em 99% dos casos, quem publica não consegue transcender o ego e a vaidade, geralmente o sujeito(a) trabalha apenas em função desses dois monstros, e vira escravo do espelho.
Na verdade, a tal da “literatura” serve apenas como pretexto. O que o futuro autor(a) deseja ardentemente é ser festejado, ganhar prestígio e dinheiro, descolar boas trepadas, e cair na gandaia. O que ele(a) quer de fato é ser devorado e moído, o que ele(a) quer mesmo é barganhar a alminha com o mundo. O infame esquece que é escritor, e se transforma no cafetão ou na cafetina de si mesmo, conheço vários.
Tudo por um cercadinho! Que se dane a urgência e a necessidade de ter “algo a dizer”, depois de ter sido engolido, o futuro charlatão nunca mais vai ter liberdade para criar e/ou ser original, que se dane o grito e o fogo sagrado, todos os seus esforços serão empreendidos no sentido de satisfazer o ego, dar satisfações e agradar os pares, afinal é o business que exige que o(a) canalha saia bem na foto, que pose de humanista e defensor dos fracos e oprimidos — entre outras dezenas de afetações e hipocrisias.
Nessa onda, não satisfeito em corromper a si mesmo, ele(a) passa a manipular os leitores, ou melhor, passa a manipular a plateia emporcalhada (porque quem consome porcaria não é leitor, é porcaria também) e, assim, garante aplausos e admiração, além de assegurar presença nas festas, editais e saraus: para ele(a) tanto faz participar de uma manifestação junto ao MTST ou entreter madames entediadas com Schopenhauer, o que conta é marcar presença e garantir a boquinha no próximo “evento”, é brilho certo em Paraty, na Sorbonne e na pqp.
Voltando a Primo Levi, ele me fez entender o seguinte: acima da vaidade, quem se dirige a outra pessoa e diz “escrevi um livro” obrigatoriamente tem que ter “algo a dizer”, algo que transcenda de seu ego, que anule suas pequenezas e mesquinharias, algo que vá ‘mas allá’ de suas psicopatias, dorzinha infinita, falsa empatia, conscienciazinha culpada etc etc etc. E não me venham falar em subjetividade.
Sou escritor e me refiro a livros fundamentais. Meu critério é minha arbitrariedade, e aqui faço um mea culpa: hoje, aos 56 anos do segundo tempo e a caminho da prorrogação, não estou muito feliz com os resultados que obtive.
Podia ter abortado ao menos metade dos 22 livros que me atrevi a publicar, tenho uma capivara comprometida com meu ego maldito, minha língua desenfreada e com pelo menos uma dúzia de livros inúteis que jazem nas estantes virtuais e prateleiras da vida, porém publiquei meia dúzia de livros fodásticos que me dão liberdade para falar o que estou falando aqui e agora.
Penso que é um crime publicar por publicar: algo comparável a um holocausto sem um Primo Levi para contá-lo. O negócio é sério. Publicar por publicar é defecar nos livros que já existem e comprometer a existência daquilo que realmente valeria a pena existir.
A exceção à regra é o autor que se repete desesperadamente para ser ele mesmo. Ninguém, por exemplo, poderia acusar John Fante de ter escrito somente “Pergunte ao Pó” e negar a relevância de “Dago Red”. A mesma coisa vale para Emanuel Bové e Henry Miller e os desdobramentos desnecessários de suas obras fundamentais, “Meus Amigos” e “Trópico de Câncer” respectivamente. É o caso de outra dezena de autores que estou com preguiça de citar, inclusive Hemingway.
Até aí tudo bem. O problema é o Chico Buarque.
Um cara abençoado por Deus e bonito por natureza, dono de uma obra musical admirável, filho de Sérgio Buarque de Holanda, parceiro de Vinicius e Tom Jobim, o problema, enfim, consiste no fato de um cara com as credencias do Chico se meter a escrever livros inteligentes que se desfazem no ar de tão insossos e desnecessários, e posar de escritor.
Não é exagero o que digo. Muito menos inveja, tenho inveja sim, mas de Tolstói. Voltando ao Chico, o que eu quero dizer é que é um exagero o circo que se arma em torno dos livros dele. “Budapeste” não tem nada a ver com “Cidades Invisíveis”, Chico não é Italo Calvino, nunca vai ser Kafka, Chico é Chico e devia se bastar por si mesmo. A mesma coisa acontece com “Leite Derramado” foi o segundo que li, e foi outra droga, podia ter sido escrito pela Maria Adelaide Amaral, depois disso, ele se meteu na autoficção — e olha que eu manjo desse riscado — e garanto que o tal de “O Irmão Alemão” é patético, um fiasco.
Aqui entre nós, a melhor coisa que o Chico fez nos últimos anos foi ter voltado ao sambinhas, aliás, uma delícia a faixa divulgada do novo trabalho dele em parceria com Hamilton de Holanda, “Que tal um samba?”
Fica por aí, Chico, vai por mim. “Não te mete” ou “porque te mete, porra?”, como diz o Pereio.
Daí eu pergunto: e a eternidade, como é que fica? Ou seja: posso perfeitamente prescindir de todos os livros do Chico e de 98% dos autores que passaram pelo Festival de Literatura de Paraty nos últimos 20 anos, mas não consigo dar um bom-dia para o porteiro do prédio sem pensar em Primo Levi. Posso prescindir das verdades tropicais de tanta gente, mas não consigo atravessar a rua sem pensar nos olhos do minotauro gelado de Juliano Garcia Pessanha. Por que o sujeito(a) escreve um livro que não é fundamental?
Desde quando cara bonita ou cara feia, CEP e condição social, etnia e sexualidade ou desempenho no programa da Fátima Bernardes, desde quando corte de cabelo e transtornos psíquicos fazem de alguém escritor(a)?
Tô nem aí com os remédios e antidepressivos que você toma, nem aí se você veio da favela ou foi criado no Castelo de Windsor, nem aí com a sua melanina e com a cor das pessoas que você manipula ou é manipulado, e nem aí para as mutilações do seu corpo — não me interessa saber com quais orifícios você trepa, e também não estou nem aí se, agora, você resolveu virar uma estrela-do-mar assexuada que escreve livros de autoajuda para lêmures e tilápias, tô nem aí para nada disso. Aliás, não sou eu que não estou nem aí para nada disso, é a literatura.
Quem se ocupa dessas picaretagens é o departamento marketing e propaganda.
Por que você não vai ler Primo Levi, e cria vergonha nessa cara?
O que propaganda e marketing tem a ver com literatura? Para mim, propaganda e marketing são sinônimos de nazismo e campos de concentração, quem criou essa merda foi um cara chamado Joseph Goebbels. Leiam Primo Levi urgentemente que é o contrário disso tudo.
Eu posso perfeitamente passar sem os chiliques, os orifícios genitais e as tatuagens de tanta gente por aí metida a escrever livros, mas pode acontecer de eu não conseguir comer um pastel de palmito sem antes pensar em “Conversa na Sicília”, de Elio Vittorini. O que não dá para aceitar é que meus livros (meia dúzia pelo menos) sejam condenados ao desprezo por essa gente afetada que dá e recebe medalhas, frequenta colunas sociais e festivais de literatura, essa gente deslumbrada que acha que o Caetano e a Anitta são gênios e que o Chico é um Italo Calvino. Se for por aí, fecho com a Mc Melody.
Em suma, leiam “É Isto um Homem?”, e esqueçam as vitrines da Livraria da Travessa e butiques afins, era isso que eu queria dizer.