O autor de um dos títulos mais cultuados da literatura de humor nasceu há 180 anos. Para sermos exatos, em 24 de junho de 1842, no estado de Ohio, EUA. Sobre a data e o local da sua morte, contudo, nada há de exato. Só suspeitas, dúvidas, aquele “Sentimento de incerteza ou de desconfiança a respeito da verdade de um fato ou de uma afirmação”, enuncia o Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa.
Ele é Ambrose Bierce, e o livro celebrado, outro dicionário, mas ficcional: “O Dicionário do Diabo” (“The Devil’s Dictionary”), compilação das definições sarcásticas que o jornalista e escritor norte-americano criava para as palavras, editada pela primeira vez em 1911 e, nos anos 1970, escolhida uma das cem maiores obras-primas da literatura dos Estados Unidos pelo American Revolution Bicentennial Administration. Neste século 21, não passa dia sem que alguém cite uma frase do livro nas redes (basta uma busca no twitter para se comprovar). O “Dicionário” já foi traduzido para o português, tanto no Brasil quanto em Portugal, mas faz um tempo.
Aqui, a mais recente edição de um trabalho de Bierce é “A Estrada Enluarada e Outras Histórias”, seleta de contos publicada há um ano pela editora Arquipélago, sob organização e tradução de Rodrigo Breunig. Nessa produção ficcional do autor, conhecida justamente por navegar pelo “sombrio e selvagem”, como notou o escritor também norte-americano H.P. Lovecraft, comparece muito o tema da guerra — onipresente no noticiário e nas conversas deste 2022, devido à invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas o assunto frequentou bastante os textos jornalísticos de Bierce também. Ter lutado jovem na Guerra Civil Americana (1861-1865) parece ter-lhe rendido uma espécie de trauma. O evento ajudou a moldar a sua visão ácida de mundo, sua carreira e, até mesmo, as circunstâncias da sua morte.
Depois da guerra, na qual foi várias vezes ferido (chegou, inclusive, a levar um tiro na cabeça), Bierce foi dar as caras em San Francisco, Califórnia, sem dinheiro e sem perspectivas. Começou a trabalhar num jornal local e, ao pôr a mira sobre políticos covardes e ricaços inescrupulosos, logo fez fama como repórter e articulista aguerrido. Em 1881, já editor da revista satírica The Wasp (1876-1941), passou a escrever a coluna Prattle (algo como “Tagarelices”), em que incluiu pela primeira vez algumas das definições zombeteiras, misantropas, com que, pelos 30 anos seguintes, ele divertiria leitores de diversas publicações e que, reunidas, comporiam o livro “O Dicionário do Diabo”. Foi nessa época, ainda, que Bierce começou a produzir contos.
Muito adequadamente, ele também cultivava uma persona lúgubre: vestia-se sempre de preto e mantinha, sobre a mesa, uma caveira e uma caixa com as cinzas do filho morto. Aos 71 anos, em 1913, após uma viagem pelo sul dos Estados Unidos em que revisitou campos de batalha da Guerra de Secessão, Bierce desapareceu. Relatos deram conta de que ele teria cruzado a fronteira para o México, país que, desde 1910, vivia o que hoje a História registra como Revolução Mexicana, e aderido às tropas do general Pancho Villa (1878–1923), inicialmente como observador. Nunca mais voltou, nem foi encontrado.
A partir daí, o primeiro parágrafo deste texto já disse: só se tem dúvidas. Teria Bierce sido executado pelos revolucionários mexicanos? Ou, cobrindo os confrontos, sido ferido acidentalmente e morto? Numa de suas últimas cartas, enviada a uma sobrinha antes de partir para o México, Bierce escreveu: “Adeus. Se você ouvir falar que eu fui colocado contra um muro no México e morto a tiros, saiba que eu considero essa uma bela maneira de deixar esta vida. É melhor que a velhice, a doença ou cair da escada do porão. Ser um ‘gringo’ no México — ah, isso é eutanásia!”. Mas há, inclusive, quem sustente a versão de que Bierce, depois da viagem pelos campos de batalha da Guerra Civil e de presenciar a Revolução Mexicana, teria voltado sorrateiro aos EUA e cometido suicídio no Grand Canyon, no estado do Arizona, plano que ele confidenciou a amigos em diversas ocasiões.
Ambrose Bierce no Brasil
Existem indícios fortes de que, 30 anos antes, no final do século 19, Bierce também passou pelo Brasil, quando correspondente em Buenos Aires do jornal “New York Tribune”. Um jornalista e historiador, Décio Freitas, encontrou na coleção desse periódico norte-americano, disponível na biblioteca de Nova York, reportagens sobre a Revolução Federalista, ocorrida no Rio Grande do Sul entre 1893 e 1895, assinadas por um “A. Bierce”. Nos textos, o repórter, impressionado, enfatizava a crueldade do conflito sul-americano, marcado pela prática da degola.
O escritor Laurentino Gomes, no volume que encerra a sua trilogia sobre o século 19 brasileiro, “1889” (Globo Livros, 2013), cita um trecho de uma dessas prováveis reportagens de Bierce, transcritas por Freitas em “O Homem Que Inventou a Ditadura no Brasil” (Ed. Sulina, 2000), livro sobre o autoritário líder “positivista” gaúcho Júlio de Castilhos (1860-1903): “Contei duas dezenas de cadáveres de homens degolados e duas mulheres mortas a tiros. […] Vi alguns crânios dispersos pela terra. Todos os cadáveres, ou o que resta deles, jazem completamente nus, pois os soldados costumam despir os mortos, a fim de vestir ou vender suas roupas, mesmo ensanguentadas. Um vento seco levanta poeira, mas não consegue dissipar o odor gordo e mole”. A cena descrita seria o resultado de um massacre perpetrado pelos “maragatos”, os rebeldes federalistas contrários aos republicanos fiéis a Castilhos e ao então presidente, Floriano Peixoto, na localidade de Rio Negro, distante cerca de 20 quilômetros da cidade gaúcha de Bagé. A chacina foi vingada pelos legalistas, que também degolaram centenas de maragatos, numa região perto da cidade de Palmeira das Missões. Dessa vez sem o testemunho de Bierce.
Hoje, o seu impagável “Dicionário do Diabo” está inserido numa tradição de glossários escritos com humor, da qual as obras do inglês Samuel Johnson (“Dicionário da Língua Inglesa”, 1755) e do francês Voltaire (“Dicionário Filosófico”, 1752) são as pioneiras. É claro que um dos verbetes satíricos que Bierce criou, vertido abaixo, é “Guerra”. Essa mesma que ele conheceu bem e considerava tão traiçoeira. Vem quando menos se espera.
Academia [s]: 1. Escola antiga onde se ensinavam moralidade e filosofia. 2. Escola moderna onde se ensina futebol.
Admiração [s]: Nosso educado reconhecimento da semelhança que alguém tem conosco.
Advogado [s]: Pessoa hábil em burlar a lei.
Aforismo [s]: Sabedoria pré-digerida.
Amizade [s]: Barco grande o bastante para carregar duas pessoas sob tempo bom, mas só uma sob tempo ruim.
Aplauso [s]: Eco de uma platitude saída da boca de um imbecil.
Autoestima [s]: Avaliação equivocada.
Azar [s]: Tipo de sorte que nunca falha.
Casamento [s]: Lar composto por um senhor, uma senhora e dois escravos, totalizando dois.
Chato [s]: Pessoa que fala quando você quer que ela escute.
Cínico [s]: Um maldito cuja visão defeituosa enxerga as coisas como são, não como deveriam ser. Daí o costume, entre os Citas, de arrancar um olho de um cínico para melhorar sua visão.
Confiante [adj]: Equivocado até não mais poder.
Conservador [s]: Político que aprecia males existentes, no que se distingue do Progressista, que deseja substituí-los por outros.
Consultar [v]: Procurar a aprovação de alguém para uma decisão já tomada.
Corporação [s]: Engenhoso estratagema para se obter lucro individual sem responsabilidade individual.
Costas [s]: Parte do corpo do seu amigo que você tem o privilégio de contemplar durante adversidades.
Cristão [s]: Alguém crente em que o Novo Testamento é um livro inspirado por Deus, admiravelmente adequado às necessidades espirituais do seu vizinho.
Destino [s]: Justificativa do tirano para seus crimes e desculpa do idiota para seus fracassos.
Dia [s]: Período de vinte e quatro horas, na maior parte desperdiçadas.
Egoísta [adj]: Aquele que não leva em conta o egoísmo dos outros.
Egoísta [s]: Pessoa de mau gosto, mais interessada nela mesma do que em mim.
Escritura [s]: Livros sagrados de nossa santa religião, distintos dos textos falsos e profanos em que todas as outras crenças baseiam-se.
Evidente [adj]: Inequívoco para você mesmo e ninguém mais.
Fé [s]: Crença sem evidência no que diz alguém que fala sem conhecimento sobre coisas incomparáveis.
Fidelidade [s]: Virtude peculiar àqueles que estão prestes a serem traídos.
Futuro [s]: Tempo em que nossos negócios prosperam, nossos amigos são verdadeiros e nossa felicidade está garantida.
Guerra [s]: Subproduto da arte da paz. A mais ameaçadora condição política é um período de amistosidade internacional. O estudante de História que não foi educado a esperar pelo inesperado pode muito bem gabar-se de ser inacessível à sabedoria. “Em tempos de paz, prepare-se para a guerra” tem um significado mais profundo do que o comumente percebido; significa não só que todas as coisas terrenas têm um fim – a mudança é a única lei imutável e eterna –, mas que o solo da paz é densamente preenchido pelas sementes da guerra e notadamente apropriado a sua germinação e crescimento. Foi quando Kubla Khan ordenou a construção do seu “palácio de prazeres” — quando, quer dizer, havia paz e fartos banquetes em Xanadu — que ele “ouviu de longes terras / As vozes ancestrais anunciando guerras!”
Um dos maiores poetas de todos os tempos, Samuel Coleridge também foi um dos homens mais sábios, e não foi por outra razão que ele nos leu essa parábola. Tenhamos um pouco menos de “Hands across the sea” e um pouco mais daquela desconfiança elementar que faz a segurança das nações. A guerra adora vir como um ladrão à noite; declarações de amizade eterna proveem a noite.
Juventude [s]: Época da Possibilidade, quando Arquimedes encontra um fulcro, Cassandra tem seguidores e sete cidades disputam a honra de dar ao mundo um Homero.
Novamente [adv]: Uma vez em demasia.
Oblívio [s]: Estado ou condição em que os maus param de lutar e os tristonhos entram em repouso. Lixão eterno da fama. Câmara frigorífica das esperanças mais elevadas. Lugar onde autores ambiciosos reencontram suas obras sem orgulho e seus superiores sem inveja. Dormitório sem relógio despertador.
Oportunidade [s]: Ocasião favorável para se conseguir uma decepção.
Paciência [s]: Forma menor de desespero, disfarçada de virtude.
Patriotismo [s]: Lixo combustível pronto para se usar na tocha de qualquer pessoa ávida por iluminar o seu nome. No famoso dicionário do dr. Samuel Johnson, o patriotismo é definido como o último refúgio de um canalha. Com todo o respeito a um lúcido, porém inferior, lexicógrafo, peço a devida licença de afirmar que é o primeiro.
Praga [s]: Na Antiguidade, punição geral imposta aos inocentes para fins de admoestação de seu líder, como no conhecido caso de Faraó, o Imune. A praga como nós, hoje, temos a alegria de conhecer é simplesmente a manifestação fortuita do despropositado caráter repreensivo da Natureza.
Prazer [s]: A menos odiosa forma de tristeza.
Realmente [adv]: Aparentemente.
Redenção [s]: Desobrigação dos pecadores de pagar por seus pecados, por meio do assassinato dos deuses contra os quais eles pecaram. A doutrina da Redenção é o mistério fundamental de nossa santa religião, e aqueles que nela acreditam não perecerão, e sim terão vida eterna para tentar entendê-la.
Religião [s]: Filha da esperança e do medo, que explica à ignorância a natureza do incognoscível.
Rezar [v]: Pedir que as leis do universo sejam anuladas em favor de um único requerente, confessadamente desmerecedor.
Senão [conj]: Não espere coisa melhor.
Sozinho [adj]: Em má companhia.