Os habitantes de Altos de la Cascada, um bairro exclusivo de Buenos Aires, não têm maiores preocupações que aproveitar as piscinas aquecidas de casas portentosas, cercadas de jardins vistosos e câmeras de segurança atentas a qualquer movimentação estranha até que são confrontados com uma realidade difícil de ser explicada. Numa manhã aparentemente banal, três corpos surgem boiando na piscina de uma dessas casas, o que provoca escândalo entre os moradores, mas não a ponto de mudar por completo a rotina de usufruto e prazer que caracteriza a vida desses privilegiados. À medida que as investigações avançam, contudo, mais irrefutável se torna o argumento que defende que as mortes não têm nada de aleatórias, e se tal conclusão prosperar, esse microcosmo de glamour e requinte pode, afinal, ser levado por uma sucessão de decadência física e ruína moral, nódoa difícil de ser apagada, principalmente num momento de baixa do mercado imobiliário, quando a necessidade pode falar mais alto e qualquer oferta já depreciada sofreria um achatamento ainda mais aviltante, categórico quanto a definir a nova condição social de muita gente.
O thriller “Viúvas Sempre às Quintas”, do argentino Marcelo Piñeyro, envereda pelo mistério a fim de tecer uma bem urdida crítica social sobre a vida das elites em seu país, conjuntura que se perpetua no tempo, desde 2009, quando da estreia, até hoje, treze anos depois. Baseado no romance “As Viúvas das Quintas-feiras” (2005), de Claudia Piñeiro, publicado no Brasil pela editora Alfaguara, o filme de Piñeyro tem por norte um atributo que já se tornou uma das grandes marcas do cinema feito na Argentina: a capacidade de, a partir de situações eminentemente idiossincrásicas, falar a públicos os mais diversos, misturando ainda assuntos de foro íntimo ao que acontece no noticiário político e econômico nacional, sensibilidade em que outros diretores sul-americanos — sobretudo os brasileiros — deveriam se inspirar. Visionário, o filme começava a alertar, com toda a sutileza, para novas tormentas no horizonte já nebuloso do país, vítima de eventuais crises desde 2001, quando se entregou de vez a debacle que o sacudia desde 1998. No meio do caminho entre atraso institucional e um futuro que poderia ser menos obscuro a depender das providências urgentes a serem tomadas, o Congresso argentino sancionou a Lei 26.571, a Lei sobre a Democratização da Representação, Transparência e Equidade Eleitoral Política. Enquanto isso, as elites davam seus últimos suspiros.
Replicando uma imagem celebrizada por Billy Wilder (1906-2002) em “Crepúsculo dos Deuses” (1950), o roteiro do diretor, coescrito com a autora do livro em que se inspirara e Marcelo Figueras, analisa a vida de três casais de classe média, com destaque para Tano, o gerente de uma multinacional, vivido por Pablo Echarri, e Teresa, interpretada por Ana Celentano. Aos poucos aparecem também Ronnie, de Leonardo Sbaraglia, o estroina que vive sob os auspícios da mulher, Mavy, a corretora de imóveis de luxo de Gabriela Toscano; Martín e Lala, personagens de Ernesto Alterio e Gloria Carrá, talvez os mais assumidamente infelizes do grupo porque sempre se souberam inadequados um ao outro; e Gustavo, de Juan Diego Botto, e Carla, papel de Juana Viale, que se mudam para o Altos de la Cascada intentando fugir do tédio, mas tudo o que conseguem é tornar ainda mais evidentes suas diferenças. Piñeyro se vale de cada dupla e de cada tipo em especial para deslindar situações extremas em todo casamento, e pronunciadas com um vigor pontual no caso desses casais. Há adultérios consumados e os que adormecem no baú das vontades, seja para dar vazão à libido, seja para uma tola vingança, ou pior, para a autoafirmação de vaidades pueris; o desajuste com o espelho; os pequenos fracassos, como uma demissão que resta oculta por algum tempo; e o amor condenável de um cônjuge pelo membro de outro par. O diretor vai deslizando por essas questões com serenidade, de forma madura, até chegar ao mote central da trama, já no desfecho. É quando “Viúvas Sempre às Quintas” se mostra um filme verdadeiramente atemporal, com a exposição das chagas de ricos hipócritas, sibaritas, complexados. Na Argentina ou aqui, eles sempre hão de fazer das suas.
Filme: Viúvas Sempre às Quintas
Direção: Marcelo Piñeyro
Ano: 2009
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 8/10