Dois irmãos passam como vultos por uma sociedade que não consegue enxergá-los e apenas os tolera. Envolvidos de corpo e alma com o boxe, também essa forma algo bestial de ganhar a vida não chega a ser para eles um destino, e, assim, são forçados a se sujeitar a algumas humilhações e fazer delas um meio de subir. Eles não morrem, mas se machucam; o mais novo, que sobe ao ringue, fere o corpo, mas parece já estar acostumado às pancadas, no corpo e no espírito, ao passo que o outro cria uma dependência parasitária para com o irmão lutador, mas sofre também, talvez até mais, ao vê-lo ser surrado por tão pouco — e não poder dispensar essa vida, uma luta cheia de muito mais fracassos que vitórias, mas da qual não se pode fugir. Cada qual a seu modo, eles introjetam esses pensamentos desde cedo e não arredam dessa filosofia algo rasteira, que os nutre com a pouca esperança que representa. Assim eles vivem e escapam da morte, suportando os golpes, beijando a lona, levantando antes que o árbitro conte até dez e driblando a tentação de jogar a toalha, fantasma na vida de todos os que aceitam o combate.
Dois tipos invisíveis, os protagonistas de “Terra Selvagem”, de Max Winkler, parecem só estar à vontade quando cercados dos elementos que compõem as lutas de boxe, e mesmo assim, em sua modalidade mais cruenta. O roteiro de Winkler, Theodore Bressman e David Branson Smith parte da premissa matadora do boxe como uma alegoria sobre os sacrifícios de se manter de pé, imolando-se para uma plateia que nunca se satisfaz, esperando ao fim de toda a agonia receber o pagamento devido. As tomadas escolhidas pelo diretor, todas evidenciando o semblante de desalento dos dois irmãos, além da inclusão de uma terceira personagem, que se junta a eles involuntariamente, mas que logo os reconhece como seus únicos amigos, constituem recursos básicos, mas eficazes, quanto a reforçar uma aura que balança do desespero calculado para a melancolia mais profunda. Aos poucos, o espectador começa a discernir quem é quem nessa história, elege seu favorito e, por óbvio, torce por um final feliz — ou o mais feliz possível, em se lidando com três figuras assumidamente marginais, que contam apenas umas com as outras.
Stanley e Lion Kaminski, os personagens de Charlie Hunnan e Jack O’Connell, são esses dois irmãos, entre fracassados e mantidos um pelo estímulo do outro. Vivendo do boxe amador, uma vez que Stanley, o irmão mais velho, de Hunnan, perdera a licença para atuar nas categorias profissionais porque tentara subornar um juiz, eles almejam a grande chance para o pugilista interpretado por um O’Connell na performance mais convincente de sua carreira. Talvez ela venha, já que eles desceram tão baixo que decerto é chegada a hora de subir. A imperícia de Stan tem custado a Lion fraturas que nunca calcificam, hematomas por todo o corpo, supercílios sempre abertos e uma artrite aos 25 anos, mas é comovente a maneira como seu técnico improvisado cuida dele — e fica permanentemente no ar a dubiedade moral do tipo encarnado por Hunnan, que consegue absorver as sutilezas de seu papel e fazer o público se flagrar questionando, com uma frequência cada vez mais incomoda, as reais intenções do Kaminski mais velho. Quando Lion perde uma luta decisiva — sobretudo para Stan, que contava com o dinheiro para quitar uma dívida com bandidos de verdade —, a única alternativa para que o caçula continue a se apresentar, mesmo como não-profissional, e o outro não seja alvo da vingança da quadrilha é aceitar a proposta de Pepper, o mafioso de Jonathan Majors, e tomar parte num torneio sem nenhuma regra, que irá pagar cem mil dólares ao vencedor. Evidentemente, as coisas não serão tão fáceis assim.
No caminho de Fall Fiver, Massachusetts, onde moram numa casa abandonada e trabalham numa pequena confecção, até San Francisco, onde acontece o campeonato, Winkler pontua o enredo com reviravoltas de tirar o fôlego, mas perfeitamente absorvíveis, envolvendo Sky, a menina-problema de Jessica Barden, parte do trato com Pepper. Na reta final, desponta o grande conflito ético que, como não poderia deixar de ser, divide os irmãos, um presa e o outro predador de Yates, o mandachuva do crime organizado, participação maiúscula do veterano John Cullum.
Filme: Terra Selvagem
Direção: Max Winkler
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 8/10