Queria falar de Junichiro Tanizaki como alguém que vislumbrou um bem-querer em meio ao caos. Não é minha intenção, aqui, tomar um distanciamento crítico nem escrever uma resenha ou algo que o valha. O que desejo é reafirmar a identidade que somente um leitor apaixonado pode ter com os livros que lhe tocaram, já falei disso numa crônica recente publicada na Bula. Queria dizer, enfim, que Junichiro Tanizaki é meu mestre. Se conseguir ao final desta crônica, tudo bem. Caso contrário, tudo bem também, porque o terei apresentado a novos leitores.
Vamos lá: “A Chave” (Companhia das Letras), o primeiro livro que li de Tanizaki, já me chamou a atenção pelo jogo que o autor estabelece entre enredo (o diário subtraído das taras de um casal) e partes do corpo feminino (pés, nuca e amante sobressalente); a partir daí, denominar a arquitetura de Tanizaki de fetichismo é pouco, uma vez que a adoração por um objeto ou qualquer parte de um corpo encerra-se quase sempre num jogo simplório de entrega. Ou melhor: pressupõe veneração de um lado e uma bobagem qualquer do outro a ser venerada. Jogo que interessa apenas às partes em questão.
Tanizaki usa os mais variados fetiches (revela fotos, assopra e não beija na boca) como instrumentos de algo que tem a virtude de ultrapassar os limites do desejo. Faz literatura.
Em “Diário de um Velho Louco” (Estação Liberdade), o velho sacana lambe os tornozelos de Satsuko, a nora que o manipula, digamos, consensualmente. Assim, “consensualmente”, que o velho louco se entrega perversamente ao domínio da nora, de certa maneira ela é a cópia do velho, portanto mais fiel ao sogro que ao marido. Aqui entre nós, trair o filho com o sogro é dose pra mamute — Satsuko podia ser uma personagem de Nelson Rodrigues.
Não bastasse, o velho louco nutre uma atração esquisita por atores do teatro cabúqui que interpretam mocinhas. Esquisita porque é uma atração ao mesmo tempo tesuda, mas não objetivamente sexual. Diz o velho (que nada tem de gay): “a atração não se manifesta se vejo o ator sem maquiagem: ele tem de estar travestido de mulher”. Talvez devêssemos entender essa atração e o efeito lúbrico que ela provoca no texto como elementos essencialmente subversivos e corruptores; portanto, muito mais do que uma simples comichão advinda do sexo.
Tanizaki é o mestre das parafilias e da demência, aliás, é uma escola no japão que tem Akutagawa como outro grande representante, leiam “Rashômon”. E eu não duvido ou gostaria de acreditar que Georges Bataille bebeu dessas fontes, e se não leu os japoneses, o francês tem a mesma raiz fincada da demência e no tesão. Parece meio esotérico falar dos meus mestres para os leitores de Thalita Rebouças, mas vai que alguém dessa geraçãozinha tik-toker caia de paraquedas na Bula?
De qualquer modo, definir Tanizaki apenas como mestre das parafilias e da demência, é pouco. A palavra adequada para compreender Tanizaki é sedução. Em seguida, poderíamos chamá-lo de gênio.
Depois, “Amor Insensato” (Companhia das Letras), que já havia sido publicado em nossas plagas pela editora Brasiliense em meados dos 1980, com o título acertado de “Naomi”. O novo título, “Amor Insensato”, é uma contradição em si. Nada mais apropriado a um homem consumido pela paixão do que repetir em vão o nome de sua amada (ou ruína, tanto faz). Naomi é um mantra ideal para o abismo sugerido por Tanizaki: Naomi puta, Naomi desgraçada, Naomi diaba, Naomi manipuladora, Naomi, meu amor, Naomi linda, feiticeira, Naomi título perfeito.
Ocorre que este amor (ou ruína…) não é cego. Amor, portanto, que é escolha de Jogi (protagonista?) e nada tem de insensato. Abismo que é salvação.
“Naomi” ou “Amor Insensato” é o livro de estreia de Tanizaki. Melhor, creio, do que “Diário de um Velho Louco” e “A Chave”. Ainda não li “Voragem”. Também quero ler “As Irmãs Makioka”.
Em “Amor Insensato” o corno se compadece dos amantes de sua amada. Jogi, bom filho, funcionário exemplar, discreto e homem austero, resolve resgatar uma menina “com traços ocidentais à Mary Pickford” de um café obscuro, e a adota. Ela tem 15 anos e ele 28. Então ele compra o passe. Aluga uma casa-estúdio e muda-se com a garota para lá, onde irá educá-la, dar banhos, pedir comida em restaurantes ocidentais, viver feito artista, transformá-la em sua esposa, uma dama. O dedicado esposo chupa-lhe os tornozelos e, entre outras coisas, a garota aprende a gastar o dinheiro dele feito uma dama… Ou uma puta, tanto faz. O ano é 1924, Japão.
Tanizaki deixa muito clara a ruína do seu personagem. Desde o começo sabemos que Jogi vai quebrar a cara. Isso não é defeito, não é previsível nem estraga o livro como alguns críticos já apontaram. Ao contrário, a maestria de Tanizaki consiste em subverter o suspense trivial. Ou estes jogos de espelhos comuns em narrativas surpreendentes mas que na verdade apenas se prestam a satisfazer e/ou compactuar com a inteligência do leitor. Creio que este tipo de livro-armadilha, a despeito de todos os encaixes aparentemente ensejados por Tanizaki, não é sua praia. Jamais meu mestre atribuiria poderes sobrenaturais a enredos mirabolantes. No lugar disso (ou para tanto), Tanizaki dá banhos em ninfetas: despreza sua cultura oriental para — desculpem o lugar-comum — reinventá-la. A apresentação de Alberto Moravia, aliás, é um ponto forte nesta “Naomi” reeditada pela Companhia das Letras.
Somente a boa literatura tem o poder de ultrapassar os efeitos especiais e, a partir do jogo aberto, desprezar os sobressaltos e, ainda assim, impactar… Claro, se o autor for um Tanizaki da vida. Kafka prescindia dos efeitos especiais — é bom não esquecer.
Nos livros de Tanizaki é bobagem falar em previsibilidade e submissão. O masoquista escolhe o próprio castigo e é mais sádico do que o sádico. Tanizaki é o Nelson Rodrigues japonês, só que é masoquista. Mas, enfim, voltando a Jogi: ele escolhe o abismo e o abismo é generoso com ele. Sob esse aspecto, poderíamos até acusar Nietzsche de ser previsível — e não é o caso, convenhamos. Naomi tripudia, gasta o dinheiro e a alma do nosso corno (que não é nada manso). Jogi, sobretudo, é seu marido. O homem que consente a traição e sofre o diabo (ou desfrutaria de um prazer infernal?) porque não há outra alternativa. Eis o final do livro anunciado desde o começo… Mas não é bem assim. Nada mais inteligente do que bater quando se está apanhando. Quando não há alternativa. O contrário — e os orgasmos assegurados — compra-se em qualquer Sex Shop, lê-se em qualquer livro de autoajuda.