A perda dos pais, claro, interfere diretamente no desenvolvimento de uma criança. Se com os pais por perto a criança ataca uma a uma as etapas da vida obedecendo a uma série de padrões de comportamento, de regras de conduta, forçando-se em alguma medida a seguir o exemplo que encontra na imagem projetada por aqueles dois adultos, sozinha, essa pessoa ainda por se completar tem de, antes de qualquer outra coisa, pensar em sua própria sobrevivência para só então achar-se preparada para encarar questões tão pouco urgentes quanto ética e moral. Crescer assim, numa condição paralela entre o humano e o bestial não é uma escolha, tampouco a resposta pouco elaborada e bastante raivosa a uma contingência trágica da vida, mas a reação natural, a única postura capaz de assegurar alguma possibilidade de que a vida continue.
O amadurecimento precoce em si não chega a ser um drama, mesmo num cenário adverso; o que de fato importa é o que essa pessoa fará a partir do momento em que reconhecer-se vinda de um universo que as demais conhecem apenas por pálidas referências, e do qual tem as piores impressões. Em tendo a sagacidade de vencer mais esse desafio, pode dizer-se apta a conquistar o mundo inteiro.
Maisie, a protagonista de “A Fera do Mar” (2022) dublada por Zaris-Angel Hator, é capaz de se safar da procela de se fazer por si só e conduzir sua vida por mares que aterrorizam muito marmanjo. A necessidade de um adulto a intermediar o processo de reconhecimento da criança como ser social, pleno de direitos e obrigações, colateral no trabalho de Chris Williams, vem a lume de maneira orgânica, sem que seja preciso mencioná-lo, e por isso absorvido muito mais rapidamente — em que pese o filme não ter tal aspiração. O monstro a que alude o título do longa é mais uma das ilusões que o diretor ajuda a criar, primeiro na mente da plateia, originalmente valendo-se de uma semântica certeira, ancorada no ótimo resultado obtido pela equipe de computação gráfica, encabeçada por Shabnam Abbarin.
A primeira criatura perseguida pelo capitão Augustus Crow, que ganha a voz de Jared Harris, é verde, imponente, está disposta a acabar com toda a tripulação do Inevitável, mas escapa, dando azo ao segundo ato do roteiro de Williams e Nell Benjamin, momento em que Maisie, incorporada ao grupo que viaja com Crow de maneira análoga à que pusera em sua rota Jacob Holland, o filho adotivo interpretado por Karl Urban, vai parar numa ilha deserta acompanhada do candidato a futuro comandante da embarcação depois que o responsável pelo Inevitável consumar sua vingança e exterminar a besta que lhe deixara cego do olho esquerdo trinta anos atrás.
Essas duas histórias, uma de tolerância e piedade, em que Maisie, Jacob e um animal pantagruélico e vermelho, não verde, se descobrem grandes amigos, se amalgama à saga de Crow, o típico velho lobo do mar, carrancudo, casmurro e ressentido, cujo maior propósito na vida sempre haverá de ser aguilhoar e dar cabo do habitante das profundezas do mar que deixou-lhe um estigma, uma lembrança maldita e eterna com que parece acostumado, mas tem o condão de despertar seus instintos os mais sanguinários.
Por meio de expedientes primariamente formulaicos, Williams erige um enredo saboroso, que agrada as crianças devido ao apuro estético e fascina os mais velhos por fomentar a reflexão com leveza. “A Fera do Mar” fala de paternidade e de configurações familiares alternativas sem querer catequizar ninguém, só divertir. Eis o mapa do tesouro buscado por tanta gente.
Filme: A Fera do Mar
Direção: Chris Williams
Ano: 2022
Gêneros: Aventura/Comédia/Coming-of-age
Nota: 9/10