Raymond Radiguet, apesar da curta vida — e talvez por conta dela — teve muitas semelhanças com seu compatriota Rimbaud: aluno brilhante, gênio descoberto precocemente, circulou ainda adolescente no meio literário de Paris, teve como mentor um artista de destaque, no caso dele, Jean Cocteau, que, para as más línguas, era mais do que isso (os historiadores ainda debatem sobre a extensão dessa relação, mas não percamos tempo com amenidades), publicou pouco — dois romances e um livro de poemas — embora uma obra notadamente visceral.
É claro que o fato de ser filho de um cartunista de sucesso o colocou em vantagem ao poeta rebelde de Charleville, mas isso de nada adiantaria se Radiguet não tivesse talento suficiente. E a prova de sua aptidão foi “O Diabo no Corpo”, sua première no mundo literário. Neste romance semiautobiográfico, um estudante de 16 anos tem um caso com uma mulher mais velha, cujo marido está servindo nas trincheiras de Primeira Guerra. Apesar da pouca idade do autor, que inclusive foi usada por críticos para tentar colocar em xeque a qualidade do livro — algo que ele se defendeu muito bem em um artigo, reconhecendo que se para escrever era necessário ter vivido, “gostaria de saber em que idade se pode dizer: Eu vivi. Uma resposta dessa é prova inegável do talento de Radiguet.
O cinismo, por vezes cruel, com que o protagonista (que não é nomeado no livro) trata a sua amada Marthe, é recorrente. Ele utiliza-se de artimanhas para enredá-la em uma teia onde a paixão, o ciúme, um egoísmo quase infantil e a possibilidade de escândalo, ao mesmo tempo que subjugam a moça, deixam suas marcas por todo o livro e prendem também o leitor.
No posfácio do tradutor Paulo César de Souza, ele cita dois fatos da infância de Radiguet que ficaram tão gravados em seu subconsciente que acabaram marcando sua escrita: em 1913 ele presenciou o momento em que a criada dos vizinhos, em um provável surto, se jogou do telhado da casa. Este fato foi retratado no segundo capítulo do livro. O outro foi quando presenciou, ao lado do pai, quando um jovem casal brincava sentados juntos em um balanço de ferro, apesar de uma placa no local, “Proibido balançar-se a dois”, se lançando cada vez mais alto, até que o inevitável acontece: o brinquedo quebra, jogando os dois de considerável altura. O rapaz não se machuca, mas a garota acaba morta em função do acidente. Teria sido este fato que inspirou o romance?
Em vários momentos do romance, o autor dá tintas bem cínicas ao pensamento do protagonista: “Meus pais condenavam a camaradagem mista. A sensualidade, que nasce conosco e se manifesta ainda cega, ganhou com isso, em vez de perder”.
“Mas que garota é essa — pensava eu — que deixa um menino criticar seu penteado?”.
“Meu pai e meus irmãos estavam aborrecidos — que importa? A felicidade é egoísta”.
“Seus pais, achando a filha uma romântica, e que os românticos, assim como os lunáticos, não devem ser contrariados, deixavam-na em paz”.
“Não pude deixar de me justificar, a meia voz. Ela balançou a cabeça: ‘Prefiro ser infeliz com você do que ser feliz com ele’ Eis uma dessas declarações de amor que nada significam, que temos vergonha de repetir e que, quando pronunciadas pela boca que amamos, nos transportam para outro mundo. Mas o que significava ao certo? Então podemos ser felizes com quem não amamos?”
Lançado em 1923, O diabo no corpo foi sucesso de público e crítica, e talvez naquela pressa dos que se vão cedo, Radiguet começou logo após a trabalhar em seu romance seguinte, “O Baile do Conde d’Orgel”, que seria publicado postumamente, assim como “As Faces de Fogo”, livro de poemas. Tendo contraído febre tifoide durante a finalização do segundo livro, Raymond Radiguet morreu em Paris, em 9 de dezembro de 1923.
Em outro trecho, ele mesmo acabou por fazer uma profética definição da curta existência:
“Um homem desregrado que vai morrer e não suspeita, subitamente ordena tudo à sua volta. Sua vida muda. Ele arruma os papéis. Levanta-se cedo, deita-se em boa hora. Renuncia os seus vícios. Os parentes e amigos o felicitam. Daí sua morte brutal parecer tanto mais injusta. Ele ia ser feliz”.