A despedida de Miguel Sanches Neto e sua receita para um conto perfeito

A despedida de Miguel Sanches Neto e sua receita para um conto perfeito

Dia 25 de junho de 2022 foi um dia histórico. Como se diz, muitos foram chamados, poucos foram os escolhidos. Quem viu jamais vai esquecer. Já consultou o Google tentando descobrir do que se trata? Não se preocupe, a Revista Bula esclarece. Sábado, dia 25 de junho de 2022, em evento promovido pela União Brasileira de Escritores, Seção Goiás, aconteceu a última oficina de escrita criativa ministrada pelo escritor Miguel Sanches Neto, premiado autor de obras como “Chove Sobre Minha Infância”, “Chá das Cinco com o Vampiro”, “Um Amor Anarquista” e “A Máquina de Madeira”. Depois de décadas de intensa atuação, Miguel Sanches Neto decidiu se retirar no debate público. Não vai mais participar de debates, eventos literários ou publicar livros, exceto dois romances já escritos que serão lançados no final de 2022 e início de 2023. Os motivos foram elencados na oficina. Trata-se de uma decisão pessoal, amadurecida longamente, que passa pela patrulha ideológica que torna quase impossível o livre exercício da criação estética chegando até a generosidade de abrir caminho para os representantes das novas gerações.

Trata-se de uma notícia para ser lamentada. Miguel Sanches Neto provou inúmeras vezes ser um grande palestrante, um extraordinário cronista e um polemista refinado. Certamente, não vai parar de ler e, sobretudo, prometeu continuar escrevendo seu diário íntimo que um dia, talvez, será publicado. Também segue com sua carreira acadêmica e de gestor universitário. Não é uma despedida completa. Será definitiva? Não sei.

O que posso afirmar é que não foi uma despedida triste. Miguel Sanches Neto garante que escreveu os livros que queria escrever. Considera seu projeto literário concluído. Quantos escritores podem dizer o mesmo?

Por tudo isso, não foi menos que generosidade Miguel Sanches Neto concluir sua oficina com a leitura do poema “Receita de Texto”, um verdadeiro mapa do tesouro. Um mapa não isento de ironia, diga-se.  O que o torna melhor. Leia abaixo esse texto.

Eu ouvi Miguel Sanches Neto recitá-lo. Eu ouvi a história acontecer na minha frente.

Obrigado, Miguel…


Receita de Texto — Miguel Sanches Neto

Escrever contos
muito pouco tem a ver
com contar casos
que ouvimos na rua,
soubemos por amigos,
jornais ou pela tevê.
Um conto é um corte
na pele fina do hoje
e ele sangra tanto
que, para estancá-lo,
resta-nos o manto
de termos cotidianos.

Não escreva contos
para fazer graça.
Só admita a piada
quando amarga.
A tristeza do tempo
que nunca para,
mesmo o amor maior
nos espeta o peito
com a pior farpa.
Conto repele risadas.
Isso é para a crônica
que ajuda a digerir
as comidas pesadas.

Apenas escreva contos
em estado de fúria,
com um ódio santo
contra toda a turba.
Um conto necessário
é um ato de cura,
catarse em meio
à insanidade de tudo.
Escreva contos para
emudecer esse mundo
tomado pela usura.

Não escreva contos
como quem brinca
com palavras móveis,
incrustáveis nas frases.
Conto já nasce pronto.
Todo esforço vem antes,
ao se sofrer o corte
e sangrar até a morte.
Não é com palavras
que se faz um conto,
mas com o sentimento
de tantos desencontros
entre o eu e o mundo,
mesmo quando o mundo
é quem um dia fomos.

Tente escrever um conto
que te prepare um pouco
para te ver como morto.
Estar vivo é algo falso
porque breve em demasia.
Todo conto é um canto,
um canto de despedida.

Não escreva contos
com palavras eruditas.
Conto é linguagem viva,
a mesma usada no bar,
na hora do namoro,
no balcão da padaria.
Palavras do dia a dia
súbito se concentram
e dizem de uma vez algo
que ninguém mais diria.

Escreva os seus contos
como quem se suicida
sem deixar bilhetes
dando os tais motivos.
Um conto não se explica.
É morte imprevisível,
a vida como enigma,
a força de um mistério
que nunca silencia.

Só escreva os seus contos
quando não houver quando.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.