Seríamos leões para os safáris de Deus?

Seríamos leões para os safáris de Deus?

Há pessoas que têm a comodidade de tomar pé de fatos relevantes, de adquirir certas sabedorias, por meio de revelações. Há revelações para todos os tipos e gostos. Há revelações suaves e melífluas e revelações toscas e rudes. Eu inclusive sou daqueles acometidos por revelações eventuais. Penso que as minhas são do gênero rude pós-apocalíptico. Em estado de sonolência tumultuada foi-me dado conhecer, por exemplo, o lado mais sombrio e desamoroso de Deus em relação às pobres almas, quando desprovidas de seus corpos e saem por aí em busca do amparo divino.

Nas revelações que tive, me foi dado saber que o passatempo preferencial de Deus é o videogame. Seu joguinho predileto é sinistro, e real do ponto de vista celeste, afetando diretamente o destino das almas. É verdade que em minhas revelações não tive o privilégio de ver a face de Deus. Vi apenas a sua nuca, porque ele estava de costas, em seu console, operando o joystick freneticamente, de olho fixo na tela. Mas sei que era Deus. Nas revelações não é necessário reunir provas para se ter certeza. Se tiver provas já não é revelação, mas descobrimento.

Eu soube que quando morremos e nossas almas chegam ao céu, demandando por salvação e sossego eterno, elas são abrigadas em baias flutuantes, com cercas e coberturas de metal gasoso, da mesma substância de que são feitos os pudins das auras dos santos. De vez em quando elas são obrigadas a se moverem das acomodações para o pátio e do pátio para larguezas celestiais, para se livrarem da leseira e do entorpecimento dos músculos etéreos. De vez em quando elas tomam banho de luz sagrada para se livrarem dos fungos, dos piolhos, das pulgas, dos percevejos e dos carrapatos transcendentes.

Ali as almas ouvem música de harpas, sanfonas, reco-recos e cuícas angelicais. Fazem cantorias, puxam ladainhas de louvação a Deus e são preservadas enquanto elas forem lembradas por alguém na terra. A memória no mundo é o que mantém uma alma viva. Uma missa, um terço em seu louvor, por exemplo, rendem tantos pontos-eternidade. Uma placa, um busto, uma estátua equestre, um nome de rua, de ponte, de viaduto, um apelido de cidade, uma citação em livro, cada lembrança tem seu peso em bônus em favor da longevidade das almas.

No entanto, quando cumprem um período mais longo do calendário divino, completamente relegadas ao esquecimento, as almas são por fim escaladas para o jogo. Deus manda apartá-las das demais e formar uma fila indiana para supostamente se alojarem em novas acomodações, de categoria mais elevada. É que as almas pensam que ainda estão no purgatório, passando pelas assepsias e depurações burocráticas e que finalmente chegarão ao paraíso para o gozo eterno.

As almas ainda não chamadas até curtem uma ponta de inveja, por verem as colegas na fila, mas se aliviam pela esperança de que seu dia há de chegar. Na verdade, quando as escaladas chegam à alça de mira, Deus puxa o gatilho da bazuca de seu joguinho e as detona para todo o sempre, fazendo pipocar enormes clarões. Deus vibra divinamente, com sua pontaria infalível. As outras pensam que se trata do arrebatamento final.

Quando não dispõe de almas vencidas para alimentar seu vício de videogame, Deus se compraz com uma reles espingarda de chumbinho a pressão. Ele não erra um tiro, abatendo dúzias e dúzias de pombos, que infestam as dependências do céu, com pinta de divino espírito santo.

Edival Lourenço

Escritor.