Um roteirista de programas humorísticos volta a morar na casa dos pais, não porque ele queira, mas para ajudar a mãe, que vai morrendo de um câncer raro. Ao longo desse recuo que a vida o obriga a fazer começam a se passar lances cada vez mais impressionantes, justamente porque inesperados, e à medida que o tempo avança, sua solidão torna-se mais implacável. É como se ele sentisse toda a tristeza que encerra seu reencontro com o passado muito mais profundamente que os outros, que também estão mortificados, por óbvio, mas tratam de tocar a marcha, do jeito que conseguem. Ao passo que se sente acolhido por estar entre os seus, percebe também as diferenças abissais que o separam de suas irmãs e em especial de seu pai, que continua a ser um enigma para ele, da mesma forma que o pai não o pode compreender. Como nos momentos mais ásperos afloram as soluções mais evidentes, por meio do convívio indesejado de uns com os outros surgem as oportunidades de dispor as cartas todas sobre a mesa, sem truques, sem blefes, como se disso dependesse a vida de alguém que se esvanece aos poucos.
A premissa de Chris Kelly em “Other People” pode até não ser lá muito original, mas a forma como o diretor elabora seu argumento, valendo-se das atuações potentes de dois protagonistas, confere a seu trabalho a dimensão de grande história que o caracteriza. Em 2016, ano em que Kelly lançou o filme, estreara “The Hollars”, de John Krasinski, também sobre um homem passando pela dor de perder a mãe enquanto tenta se ajustar ao reingresso numa rotina que julgava superada. A diferença aqui é quanto à tonalidade das emoções. Se Krasinski prefere segurar a rédea da possível amargura do que se assistiria em sua história, o diretor de “Other People” faz questão de apresentar seus personagens sempre a um passo do abismo, do qual escapam só por causa do amor que aquelas pessoas nutrem umas pelas outras, claro, mas igualmente pelo humor com que lidam com as circunstâncias, mais e mais irreversíveis. O maior trunfo de Kelly é se valer da esperança com que tinge o começo da narrativa para se aprofundar no conflito que justifica seu roteiro, até que sobrevenha o desfecho que todos imaginamos, mas que torcemos até o último instante para não se realize de fato — e mesmo quando não há mais qualquer margem para regresso, se impõe a mensagem positiva que esteve presente desde a abertura.
Jesse Plemons brilha como David Mulcahey, um alter ego do diretor. Esse homem sofre com a doença, inusitada e cruel, da mãe, mas sofre em igual medida por ter de sujeitar a passar por boa parte das situações que ele já julgava relegadas a uma outra vida. Plemons consegue evidenciar a culpa de seu personagem por não se martirizar pela morte iminente de Joanne, mas por estar quase tão mal quanto ela — e por essa, afinal, a verdadeira razão de seu lamento. Decerto a sequência que resume bem do que quer tratar Kelly é a que reúne toda a família, que viaja de Sacramento, na Califórnia, para uma visita ao apartamento de David, pequeno e num bairro afastado de Nova York. Joanne e as filhas mais novas, Alexandra, vivida por Maude Apatow, e Rebeccah, de Madisen Beaty, sobem com ele, enquanto Norman, o pai interpretado por Bradley Whitford, aguarda na calçada para não ter de reconhecer que o filho vive maritalmente com Paul, interpretado por Zach Woods. Mas nem disso David pode se gabar: a relação dos dois já acabou há algum tempo, e Paul está, na verdade, fazendo um favor ao ex-parceiro, que quer que a mãe pense que ao menos nesse campo, o dos afetos, ele está realizado. Numa das derradeiras sequências da história, numa conversa de travesseiro algo curiosa, Joanne confidencia que sempre soubera de tudo — e como a hora é de confissões, ela acaba por se penitenciar pela forma como lidou com o momento em que o filho se assumiu gay.
Plemons corta o coração na pele de David, mas Molly Shannon está irretocável como Joanne. Tanto a maneira sofisticada com que constrói a metamorfose de sua personagem, de uma mulher resplandecente ao mero vulto do que fora, como seu trabalho de corpo, apresentando-se com o crânio todo à mostra, abatida, esquálida, são dignas não da grande comediante que sempre se provara, mas de uma genuína atriz, abnegada e entregue a seu ofício. Pérolas de histórias aparentemente banais despretensiosas, como as das outras pessoas.
Filme: Other People
Direção: Chris Kelly
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10