Minha filha não entende por que motivo passei a ouvir tanta música sertaneja nos últimos dias. Vou te explicar, filhinha.
Há pouquíssimas vantagens em envelhecer. Dá para contá-las nos dedos, sem se desesperar. Não falo isso de cátedra, pois, afinal de contas, ainda não cheguei ao ápice da minha decadência físico-mental, enquanto criatura animal viva. Tenho só 56. Se não me atropela um trem, se não me esmaga um piano que se atira de um prédio, pode ser que atinja esse triste e indelével patamar evolutivo que outra coisa não é senão uma deslavada involução do corpo e da mente. Somos aquela flor que murcha em descompasso diuturno.
É inegável que as vivências produzem maturidade e essa última conduz a maior parte das pessoas a desenvolver uma visão de mundo menos arrogante, menos egocêntrica e menos estreita. Persistem, é claro, os veteranos que nada assimilam de proveitoso, que continuam a não entender bulhufas sobre a vida, apesar da idade mais adiantada, teimando em pensar e em agir com a impetuosidade e a inconsequência de um adolescente cheio de razão. Esse tipo de indivíduo não tem solução eficaz senão aguardar que a morte consuma, sem remorsos, todo o seu cabedal de estupidez recrudescente.
Não costumo ser tão explícito na explanação dos meus pontos de vista, mas, vou abrir uma exceção nesta crônica. Espero que seja uma experiência útil para alguém. Quem me conhece sabe que amo a música como uma espécie de filosofia de vida. Dali retiro ensinamentos. Ali encontro paz interior e apoio moral. Particularmente, gosto de cantar, de tocar o violão e, até mesmo, de fantasiar que sou uma sumidade musical. Ainda bem que a ilusão dissipa na brisa.
Como qualquer pessoa ordinária, tenho lá os meus delírios extraordinários. Quando garoto, cheguei a compor canções e a participar de festivais de música brasileira. É claro que nunca me tornei um artista popular, muito menos, venci algum dos certames dos quais participei. Além da minha dileta mãezinha, que me considera fofo e talentoso até hoje, posso lhes assegurar, sem medo de acertar, que sou um cantor de chuveiro de qualidade mediana. Por isso mesmo, não desisto de me divertir cantando.
Recentemente, fui convidado por alguns colegas para participar de um festival de música que faz parte da gloriosa retomada da vida normal após a pandemia pelo Covid-19. O charmoso evento chama-se FESTMEGO e acontece aqui na nossa região há, pelo menos, vinte anos, com fragoroso sucesso. A peculiaridade desta nova versão do festival reside no fato de que ele será dedicado exclusivamente à música sertaneja, um gênero que, assim como o forró, casa bem com as festas juninas que pipocam para tudo quanto é lado em território nacional.
Sou um fã de rock e de MPB. Então, embora lisonjeado, fiquei um tanto surpreso com o convite, pensando que aquela coisa de música sertaneja não tinha nada a ver comigo, pois, não era um tipo de som que eu ouvia em casa, de livre e espontânea vontade. Aliás, ao longo do tempo, desde que sucedeu a ascensão meteórica da música sertaneja no Brasil, fui pegando uma birra por esse gênero musical que passou a tocar massivamente nos programas de televisão e rádio. Quando os endemoninhados do show business passaram a tachar o fenômeno como “sertanejo universitário”, a ojeriza tomou conta de vez, assumindo proporções descomunais dentro da minha cabeça. A estética cafona daqueles artistas contribuía para fomentar em mim o ranço, o preconceito e a gastura. As cabeleiras com gel, as sobrancelhas feitas e aquela carinha de bebê dos novos ícones sertanejos faziam um efeito contrário em mim, causando repulsa, raiva e preconceito. Preciso assumir que pequei.
Até o inusitado convite para o FESTMEGO, eu já ouvia os principais clássicos da música caipira, também chamada “música de raiz”. Nutria uma admiração sincera por artistas que optavam em se manter fiéis às origens interioranas, compondo, produzindo, gravando e cantando canções que diziam respeito às suas verdades, à singeleza de uma vida levada no campo, junto da natureza intacta, sem apelar para a promiscuidade criativa em busca de um hit patético que caísse no gosto da massa consumidora de música comercial.
Faço este prolixo e atoleimado preâmbulo só para contextualizar a conclusão de que a maturidade que os anos trazem está me proporcionando muito mais calma, sapiência, tolerância e disposição para parar, ver, ouvir, raciocinar, aceitar e, por causa disso, deixar de menosprezar, de difamar ou de ridicularizar os pontos de vista das demais pessoas, cujos gostos musicais — dentre outras formas de pensar e de gostar — são diametralmente opostos ao meu. Sinto que estou me tornando um sujeito menos boçal e presunçoso.
Musicalmente falando, estou mais afeito às experimentações, a renegar os paradigmas, a escutar com sincera atenção o que os artistas de outros gêneros musicais têm a dizer, desde que o façam de forma honesta e, acima de tudo, com atitude e poesia, sem apelar para a produção de uma música que se submeta aos rasos parâmetros do mercado que jamais se preocupa com a qualidade. Subjugado pelo tempo, percebo que tenho me tornando um indivíduo mais suave e tolerante, não apenas no que tange à música, mas também, às mais variadas nuanças da difícil e complexa convivência em sociedade.
Passei vários dias ouvindo repertório sertanejo, desde os primórdios até meados dos anos 1990, quando a coisa deu uma degringolada, passando a parecer muito menos tolerável aos ouvidos. De tanto escutar os clássicos sertanejos, descobri que havia muita entrega e sentimento em letras e melodias que descreviam a realidade do homem comum das plagas mais interioranas do país.
Tomando a preferência musical como uma singela amostra do que somos capazes em matéria de mudanças de estilo de vida e de visão do mundo, reitero a pretensão de deixar de ser um daqueles grandessíssimos idiotas de que falava Raul Seixas em “Ouro de tolo”. Eu me reconheço como um ser humano ridículo e limitado. Mas, não me conformo com essa pecha, absolutamente. Quero aprender a usar muito mais do que os 10% de minha cabeça animal. E ser feliz. E deixar ser feliz.
No final nas contas, eu aceitei o convite para o tal festival de música sertaneja. Escolhi cantar “Trem do pantanal”, uma composição de Paulo Simões e Geraldo Roca, que ficou imortalizada na bela versão de Almir Sater. Salve a diversidade cultural. Salve a música popular brasileira, na qual está inserida, de forma inequívoca, a legítima “música de raiz” que espelha o cotidiano, os sonhos e os anseios de um povo brasileiro que permeia, que povoa os mais singelos e bucólicos rincões desse país tão belo, tão economicamente promissor, mas também injusto, no que diz respeito aos históricos abismos que separam as castas sociais.