O diabo não pode velejar, nem fazer sexo anal. Não pode beijar na boca, nem jogar sinuca. Ele é cego para o nascer do sol.
Quase todos os pecados, azares e prazeres dos homens são interditados ao diabo, com exceção de um. Um único pecado. A única condição cujos homens e o anjo do mal se equivalem.
A inveja.
Desde muito cedo invejei. A primeira vez que abri os olhos na maternidade, já no primeiro choro, chorei de inveja. Gritava pela inadequação diante da beleza do mundo.
Invejei o mundo.
A partir do ponto de vista do inocente até a visão mais corrompida, devo tudo a inveja: do primeiro mar prateado pela lua cheia até a primeira vez que passei pela roleta do Parque Antártica, ainda criança e desde criança e até hoje, invejei. Invejei muito. Inconsciente e conscientemente, meu mundo particular sempre foi habitado pelo diabo.
Tirando a gemada que minha avó fazia, e um cachorrinho branco que abanava o rabo para mim, era tudo inveja. Às vezes fico em dúvida com relação ao tio Zezeca, e seu Gordini Bege-Camboriú. O carro era muito parecido com ele: simpático, gordinho e bochechudo. Talvez eu tivesse uma mistura de inveja e admiração divina por aquele carro. E pela figura do Zezeca.
As bochechas que me atrapalharam muito na minha juventude, e que agora estão murchando, herdei do tio Zezeca, ele sempre tinha um copo de uísque na mão. Talvez o invejasse por isso. Não era bem meu tio, ele era sobrinho da minha avó.
O diabo, como os homens, jamais vai entender as mulheres e nunca vai conseguir se deleitar com o suor no lombo das empregadinhas, apesar disso tenho certeza que fui cavalgado pelo diabo quando cavalgava Gessy, para o delírio do tio Zezeca e da vovó. Bate nela, bate! Bate, bate mais!
Importamos Gessy de Blumenau, era governanta da casa e tutora dos três irmãos, porém somente eu tinha permissão de cavalgá-la.
O suor dela era azedo e catinguento (suor do sexo, hoje eu sei: pura delícia) e suas carnes trêmulas imploravam para serem açoitadas. Num misto de relincho e fonética aplicada em si mesma, Gessy empinava o flanco, e ensinava: bate, patrãozinho, bate forte. Eu a amava e sapecava-lhe o relho! Assim fui alfabetizado.
Alguma coisa me dizia que tio Zezeca comia Gessy depois das sessões de montaria, e que ele também tinha um tesão louco pela vó, que era a dona do pedaço. Hoje tenho quase certeza que eu, ainda criança, servia de lubrificante para a tara do trio sadomasoquista. Eu era a preliminar deles.
Tesão eu logo relaciono com inveja. Mas só o tesão interditado, demente.
O diabo não pode tirar carteira de habilitação. Mas criou o Dodge Dart pros donos de Gordini morrerem de inveja. Zezeca — claro — além de querer comer vovó (ou ser comido por ela, vai saber?), morria de inveja do dojão RT do velho desossador, mas essa é outra história.
Eu tive inveja dos adultos, muita inveja, e muito medo. Não conseguia me comunicar com eles, e criei uma identidade rancorosa que foi meu escudo e minha desgraça, tinha inveja do charme dos adultos e da lubricidade deles. Então fui ficando mudo, dentuço e esquisito, minhas pernas cresceram em desproporção ao tronco, e junto vieram as olheiras. Uma cegonha com adejos de morcego, mais as bochechas inchadas. Era a alma travada que dava as caras. Foi nessa época que a inveja me envergou.
E logo comecei a olhar para baixo. A cavar buracos, e me enterrar neles. Cavei fundo até chegar ao inferno. Assim eu cresci, e nunca tive uma namorada.
Adquiri um tesão escroto pelas carnes do rancor e da solidão, e foi desse modo que flertei com as primeiras taras e, depois, com as parafilias mais pesadas. Fetichista e sadomasoquista desde criancinha.
Enquanto primos e primas namoravam e dançavam aos embalos de sábado à noite, eu preferia me trancar no quartinho da empregada e fumar guimbas de cigarro manchadas de batom. Devia ter sentido tesão pelas mulheres da minha mãe. Mas foi só ódio mesmo. Inveja genuína tive da indiferença e cinismo malignos do meu pai: um autista debochado com traços de perversidade que teve a sorte de nunca ter sido diagnosticado.
Antigamente as pessoas andavam doentes pelo mundo e ninguém enchia o saco delas.
O engraçado é que não me tornei um fumante nem um assassino, mas o taradinho que escreveu meus livros.
O diabo não pode escrever por mim. Porque é um dom que Deus me deu, e a literatura é o jeito que Deus arrumou de tirar uma onda da cara do diabo, seria perfeito se não envolvesse terceiros. De uma maneira ou de outra, é escrevendo que dou o troco no diabo, e o faço experimentar do próprio veneno. Eu sei que ele me inveja.
Ora me cavalga, ora é cavalgado por mim. Não temos um pacto, tampouco uma trégua. É uma guerra. O maldito não larga do meu pé porque sabe que no lugar de valorizar e agradecer o dom que Deus me deu, eu prefiro remoer as pequenezas, o ódio e a inveja que, afinal, são os nutrientes da ração que o diabo me oferece, a comida do cão desde sempre, é assim que ele me engorda, que ele cuida de mim.
Cão come cão.
Outra coisa que o diabo não pode/não consegue e talvez nem considere fazer é devorar a si mesmo.
Daí que devoro as carnes, a minha própria e a do diabo. E é assim que o cevo e cuido dele.
Sou um missionário. Um homem comum.
Que se prostra humildemente diante de Deus, e roga por misericórdia e salvação.
*Cão come cão — tomei o título emprestado de um romance de Edward Bunker, e esse texto é o primeiro de um livro de contos que pretendo escrever nos próximos meses. Minha intenção é desenvolver uma história para cada personagem que deu as caras por aqui. Claro, isso vai depender exclusivamente de um polpudo adiantamento do editor que eventualmente estiver interessado na ideia. É patético ser escritor no Brasil de 2022.