O melhor filme de ação (e vingança) da história recente do cinema está na Netflix Divulgação / Samuel Goldwyn Films

O melhor filme de ação (e vingança) da história recente do cinema está na Netflix

Um presidiário chamado Cain encerra grande carga de simbolismo em torno de sua triste figura. Autorizado a deixar a cadeia para visitar a mãe, sucumbindo ao câncer de pâncreas, Cain não consegue mais vê-la com vida, mas aproveita a chance de estar na rua para acertar as contas com o policial que o prendera e quase o matara depois de uma surra, humilhação que ele não pretende esquecer. Cada segundo da liberdade temporária de Cain, homônimo do irmão endemoninhado do “Gênesis”, será empregada em seu plano de vingança, que contempla, como na narrativa bíblica, matar o irmão que julga tê-lo traído. Sua mente e seu coração irmanam-se nesse processo, enquanto dedica parte de suas energias a se lembrar também de passagens agradáveis; entretanto, por maior que seja seu esforço, todas as poucas imagens de uma época menos melancólica são embotadas pela força dos momentos ruins. Sua grande luta é travada dentro se si mesmo, contra pensamentos que o querem enlouquecer. A vontade de reparação, tão obsessiva quanto cheia de fúria, é seu único estímulo para continuar a viver, ainda que saiba que, no fundo, a vida para ele resta perdida.

“Implacável” (2019) faz justiça ao nome e se vale desse personagem, a própria encarnação da mudança, a fim de burilar ideias como determinação e desajuste social, ingredientes explosivos que fermentam na quietude de almas encarceradas no mais soturno dos calabouços. O diretor Jesse V. Johnson é diligente quanto a atender os anseios do espectador e proporciona as incontáveis sequências de confrontos físicos que tornam filmes como esse uma atração à parte no vasto universo do cinema macho, definido pela onipresença de protagonistas visivelmente perdidos no pouco de dignidade que ainda lhes resta, mas que sabem se valer de seus predicados viris para resgatar o gosto por viver. Esse nível exacerbado de uma testosterona meio tóxica, que mais envenena que revigora, vem personificada num homem antes nem tão vigoroso, mas decerto muito mais feliz — ou menos vulnerável à tristeza. Curiosamente, quanto mais os músculos lhe sobressaem, mais aparente fica sua debilidade, um jogo retórico tão sutil que é preciso respirar um pouco e refletir sobre o que é exposto para se atingir tal conclusão.

Johnson faz bom uso dessa estética ao investir em seu personagem central. Vivido por Scott Adkins, Cain começa como um criminoso meio xexelento, desacreditado pelos bandidos que tem, de fato, alguma relevância no submundo, e entre esses está seu irmão, Lincoln, de Craig Fairbrass. Desse ponto em diante, o diretor abusa dos conflitos familiares em que o roteiro de Johnson e Stu Small se ramifica, ora sob a perspectiva de Cain, ora apreciados sob a ótica de Lincoln, aquele cada vez mais excluído das decisões e dos rumos que os grandes criminosos dão a seus negócios, ao passo que este é um dos mandachuvas de toda atividade extralegal, principalmente a agiotagem. A primeira reviravolta implica numa traição de Lincoln contra o anti-herói de Adkins, que o leva à cadeia; preso, Cain se descobre dono de um vigor descomunal, que o impele a surrar quem quer que o amofine. O excessivo tempo ocioso se presta como incentivo para treinos solitários, e a transformação física do protagonista passa a ser um dos chamarizes da história. Cada vez mais confiante, Cain não hesita em sair no braço ao menor sinal de desaforo, até que é pego no contrapé numa manobra desleal do adversário da vez, surgindo daí a aparência bestial que se torna sua marca registrada. Quando vislumbra uma oportunidade, arriscada, de fugir, ele se lança com tudo na empreitada. Consegue escapar e vai direto para o pub de Bez, exclusivo para os mafiosos de alto coturno. Não é bem-vindo, claro, mas entra mesmo assim, não sem antes distribuir uns sopapos nos infelizes encarregados de guardar a entrada. Pede uma cerveja à anfitriã, papel de Kierston Wareing, e enquanto Lincoln, frequentador assíduo do bar, não chega, Cain aproveita para deixar claro que não está mais disposto a nenhuma diplomacia.

A ação se desenrola basicamente do ponto de vista das desavenças entre os irmãos, levadas às últimas consequências numa narrativa paulatinamente mais sangrenta a cada novo pequeno anticlímax. O que tem importância mesmo é o enfrentamento de Cain e Lincoln, passado quase todo no estabelecimento de Bez, até que um dos dois cede. A performance de Adkins, surpreendente — e ajudada pela boa caracterização, frise-se — redunda numa história em que a violência nunca deixa de ser o eixo, mas que também adquire um tom verossímil de drama. Aqui, quanto mais cicatrizes, melhor.


Filme: Implacável
Direção: Jesse V. Johnson
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Crime
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.