A República de Ratanabá

A República de Ratanabá

A lista de malabarismos, credos e volteios, ideologias, engajamentos & falsos engajamentos servidos à fraude é extensa (…). Chega a ser constrangedor elencar personagens e situações, de modo que é melhor poupar os leitores dos detalhes mais sórdidos e/ou exóticos, quer dizer, talvez eu não resista e fale apenas de um caso à guisa de ilustração. 

Digamos que não faço diferença entre um chefe de almoxarifado, um advogado-poeta e um lutador de boxe tailandês. Tanto faz se fulano elabora catálogos de fraldas geriátricas, enche o outro de porrada ou se ocupa de próclises, ênclises e mesóclises. Se ele não tiver uma obra a ser erguida, e se ele não for realmente imprescindível (até nos erros cometidos) estará não somente erguendo muros, enrolando a plateia e torrando a paciência dos outros, mas riscando do mapa os horizontes dele e, principalmente, daquele ou daqueles que realmente têm o que fazer/obrar/dizer.

É exatamente o que se passa no Brasil.

Não faz muito tempo as pessoas eram manipuladas, e as fraudes aconteciam evidentemente sem o conhecimento/consentimento delas. Manipulação era manipulação, algo deletério, sórdido e indesejável. Ninguém queria ser manipulado, como ninguém desejava ser roubado ou violentado ou ser feito de trouxa. Parece óbvio né?

Nem tanto.

De repente, não mais que de repente, as pessoas escolheram ser manipuladas e enganadas, e não só. Reafirmam orgulhosas a condição de trouxas.

Bem, eu sabia que não ia resistir. Vou ilustrar. Consta que dr. Mario Frias, ex-secretário de CULTURA, ex-galã de Malhação, e atualmente candidato a uma vaga na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional, teve uma audiência com Urandir Oliveira, também conhecido como ET Bilú. Ocasião em que o cientista e o intelectual divulgaram Ratanabá, suposta civilização perdida na Amazônia, e que — segundo eles — era a “capital do mundo” há 450 milhões de anos. Melhor escrever por extenso: quatrocentos e cinquenta milhões de anos.  Eu havia prometido aos leitores poupá-los dos detalhes e escatologias, acho que esses milhões de anos são mais do que suficientes, né?

Um parêntese. Muita gente teme pelo avanço das Inteligências Artificiais (I.A). Elon Musk não descarta a possibilidade de que, dentro de pouco tempo, as I.A irão eliminar de vez a presença do ser-humano da face da terra. Talvez seja o melhor para todos nós, acredito inclusive que já passou da hora. Sem pestanejar, trocaria o ET Bilú por qualquer I.A que soubesse o que é regrinha de três e fizesse uma boa maionese de ovo.

Como eu dizia, parece que as pessoas fazem questão de serem ludibriadas e feitas de trouxas. Aliás, é condição sine qua para ser feliz e pertencer aos novos tempos. Algumas inversões, bizarrias e aberrações não só entraram na ordem do dia, como ameaçam ser a regra dos próximos anos e de um futuro não muito distante: um futuro triste, mambembe e falso como as aparições alopradas do ET Bilú.

Infelizmente é muito mais do que opção de vida, modismo, credo, desejo ou ideologia, trata-se de uma força cosmológica da burrice como nunca antes vista na história da humanidade, como se o sol voltasse a girar em torno da terra — uma terra plana habitada por extremistas de todos os feitios e arrebites, e festejada por ladrões, vigaristas e malandros que — claro e evidente — estão se esbaldando como nunca.

Não sei se é o caso de torcer pela vinda de um novo Copérnico ou de um asteroide para fazer as coisas voltarem a girar novamente sobre seus próprios eixos.

Os fraudadores, picaretas e manipuladores em geral enriquecem e fazem a festa. Tanto faz o nicho ou a esfera de atuação do malandro, tanto faz se a manipulação é física ou metafísica. A festa do horror e da picaretagem contaminou desde os mais altos magistrados da nação até o mais simplório mendigo conquistador de rodoviária. Creio que não é preciso dar nomes e/ou citar mais exemplos, basta percorrer a timeline do seu celular, e se inteirar dos noticiários dos tribunais & showbiz & muquifos afins para comprovar o que estou falando.

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Isso tudo — nem tão despropositadamente — me fez lembrar de Christopher Hitchens. O sujeito era meio asqueroso, mas muito interessante. Lembro da participação dele na festa de Paraty nos idos de 2006. Ocasião em que defendeu Bush Filho e a invasão do Iraque pelos EUA. Não só Gabeira enfiou o rabo entre as pernas, mas toda nossa esquerda casa-do-saber-hip-hop-itaú-personalité deu uma amarelada. Wisnik, Hatoum, e cia ltda, ninguém o encarou. Não por acaso, foi neste ano que a revista “Piauí” chegou às bancas. Eu estava lá e sou testemunha ocular daquilo que seria a prenúncio da era dos trouxas e da manipulação ampla, geral e irrestrita das consciências.

Eu vi! Os luminares da nossa intelligentsia fingiram que não foram enquadrados por Hitchens, e que nada demais aconteceu. Nem uma nota sobre a fala do inglês nos jornais, se bem me lembro os destaques daquele ano foram os cachecóis xadrezes à la palestina. Lula (pós mensalão), echarpes, cachecóis revolucionários & literatura, a cara do Brasil naqueles tempos pré-Ratanabá.

Não foi à toa que chegamos na República de Ratanabá!  Uma coisa evidentemente levou a outra, não dá para negar.  Como também é inegável que nossas entidades & oráculos (os de sempre) deram um show na aprazível Paraty sem rede de esgoto e saneamento básico. Idos de 2006… o tempo passou e a hipocrisia só fez aumentar. Aliás e a propósito, eu acho que já passou da hora de dedicarem uma Flip para Rubens Ricupero: “O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”.

À época escrevi sobre meu encontro com Hitchens. O texto “maldito” cujo título é “Paraty 2006” encontra-se nas nuvens da internet. Deem um google.

Imagino Christopher Hitchens, hoje, no purgatório dos ateus, negando a existência de Deus, ele e Saramago, o chato, um tendo de engolir o veneno do outro; pobre Hitchens: pior do que dividir o cercadinho deve ser compartilhar do mesmo ateísmo com o português-quase- esquina-com-o-inferno. Até dar o braço ou a alma a torcer, Hitchens vai sentir muita falta da selvageria de Paraty e de seus miquinhos amestrados.

Era um homem que, já naquela época, não tinha absolutamente nada a ver com aquilo que chamamos “feijão com arroz”, sorte dele que partiu desta para melhor (talvez o purgatório do qual desfruta na companhia de Saramago, o chato, não deve ser pior do que se imaginar em Ratanabá ou em Paraty no Brasil de 2022… ); enfim, o que quero dizer é que nos dias que correm, de intimidação e fraudes, manipulação e asnices generalizadas, tipos como Christopher Hitchens fazem muita falta, ele era um ponto fora da curva, um sujeito que tinha muito que dizer/fazer/obrar, apesar de muitas vezes estar equivocado.