Uma anti-heroína que não tem o traquejo social como um de seus predicados tem de arrumar alguém com quem ir ao baile de formatura, mas vai ter de esperar um pouco mais e rever seus planos de se esbaldar junto aos colegas numa pista de dança com direito a globo de espelho e ponche de frutas depois de três anos se preparando para a faculdade. O baile, palco para as primeiras experiências românticas de adolescentes mundo afora, torna-se mero sonho para ela porque um fenômeno excêntrico, para dizer o mínimo, cerca de perigos não só a festa, como a própria sobrevivência dos alunos. A vida não é fácil, a adolescência é especialmente delicada, e quando se é obrigado a lidar com a morte sem descanso — e de uma maneira tão brutal, ainda que algo jocosa —, seguir adiante toca as raias do insuportável, malgrado quando se dispõe de uma dose a mais de espírito. Perdas se vão acumulando ao passo que o consolo do amor, com seus instantes de mágica desafetada, alivia o fardo, mas por um tempo exíguo, porque o amor se acaba também. O que parecia ruim seguiu o curso natural da realidade e ficou pior. E agora?
O cômico e o nonsense de “Spontaneous” (2020), a ficção científica de Brian Duffield, se vale de um pressuposto que excede em muito o habitual a fim de explorar as desditas e as glórias de uma etapa da vida em que tudo é tão misterioso quanto trágico, fugaz e ao mesmo tempo eterno. Com seu filme, Duffield pretende compor um trabalho voltado ao entretenimento — e ainda mais particularmente, ao entretenimento de crianças e adolescentes — que saiba dialogar com suas parcas expectativas acerca do mundo que os rodeia, repisando algumas ideias quanto ao inferno (em sentido metafórico e, como aqui, igualmente literal) que a iminência da vida adulta traz para o cotidiano de gente comum. Essa atmosfera de um pesadelo de que não se consegue acordar fica mais e mais inescapável exatamente conforme a protagonista se dá conta de que esses eventos sinistros se repetem ad nauseam, fazem vítimas de uma maneira acintosamente aleatória, ao menos à primeira vista, e encerram mistérios que parecem impossíveis de serem desvendados — e quiçá o sejam mesmo.
O roteiro de Duffield desdobra-se sobre a adaptação do romance de mesmo nome de Aaron Starmer, que com um texto precisamente direcionado para jovens adultos, acerta seu alvo sem maiores dificuldades. Mara Carlyle, a mocinha de Katherine Langford, é uma das alunas mais populares da escola, parece nunca ter tido problemas com o rendimento e é perfeitamente capaz de manter sua rebeldia natural sob controle, sobretudo no contato com os professores. Para sua surpresa, como a sequência inicial mostra em detalhes perturbadoramente realistas — e o trabalho de Aaron Morton, o diretor de fotografia, é essencial nesse ponto —, seus colegas começam a explodir espontaneamente diante de seus olhos, espalhando um vermelho-groselha que se espraia para toda a tela e quase se derrama no colo do público. Enquanto tenta lidar com tanta novidade macabra, contando com o respaldo providencial de Tess McNulty, a melhor amiga interpretada por Hayley Law, Mara se defronta com o interesse amoroso de Dylan Hovemeyer, o nerd sensível de Charlie Plummer, que volta a exibir desempenho cirúrgico, como se o papel tivesse sido pensado para ele, a exemplo do que se assiste em “O Assassino de Clovehitch” (2018), levado à tela por Duncan Skiles. O desaparecimento impreciso e súbito de Dylan depois que o namoro já havia engrenado desencadeia em Mara uma sucessão de reações autodestrutivas, tão brutais que chegam a tornar quase inviável a amizade com Tess.
A maneira como o diretor trabalha o comportamento das duas diante do infortúnio que os iguala a todos é o maior elã do filme, que usa uma premissa delirante, escatológica, abjeta, para falar — aos adolescentes sobretudo, frise-se — de como se pode enxergar um problema, por maior e mais insolúvel que pareça: ou sob a ótica fatalista e pouco perspicaz de Mara ou sob a perspectiva de um otimismo espantosamente racional, como faz Tess. Encarnando cada qual a pulsão de morte e a pulsão de vida que nos impõem as grandes questões da existência, as protagonistas de “Spontaneous” quase gritam aos jovens para que envelheçam, como aconselhou placidamente Nelson Rodrigues (1912-1980), o que só entendemos muito tempo depois. É mesmo necessário que se passe toda uma vida para que sejamos, verdadeiramente, jovens.
Filme: Spontaneous
Direção: Brian Duffield
Ano: 2020
Gêneros: Ficção científica/Comédia/Coming-of-age
Nota: 8/10