Distopias têm um caráter quase pedagógico. Mediante essas histórias delirantes, inverossímeis, farsescas, não raro patéticas, que chegam aos olhos e ao coração de muita gente verdades imperscrutáveis até o momento em que filmes que se imbuem desse propósito vêm a público. Girando sobre o eixo da necessidade da fundação de um mundo melhor — sem que se saiba exatamente o que viria a ser isso, nem como alcançá-lo —, enredos distópicos vão se desdobrando de forma a tornar cada vez mais humilhante ao público a certeza de que o homem é mesmo o lobo do homem, e que quem assiste tem muita responsabilidade nisso. A sanha predatória, que avança inclemente em cima da natureza, que por seu turno vinga-se quando menos se espera; esquemas fraudulentos de arrecadação de dinheiro, que se transformam em pragas mundiais e põem em risco a higidez financeira de países reconhecidamente prósperos, o que redunda em miséria e fome; catástrofes naturais a cuja grandeza a humanidade nunca será capaz de fazer frente, mas que uma vez negadas, como uma criança birrenta faz ao receber o pito de alguém mais velho, redobram de tamanho e varrem o planeta do mapa são assuntos recorrentes no vasto cardápio cacotópico do cinema desde sempre.
Com “Spiderhead” (2022) não é diferente. Malgrado derive sobre um tema colateral — as belas e perigosas emoções do homem —, o filme de Joseph Kosinski, diretor do aclamado “Top Gun: Maverick” (2022), também toma por centro a vontade destrutiva e autodestrutiva do gênero humano em melhorar o meio em que se insere, a sociedade de onde surge, sua própria biologia e seu jeito mesmo de pensar e refletir o mundo em seu entorno e, como dissera Schopenhauer passados dois séculos, só o que consegue é deitar tudo a perder, exatamente por sua incapacidade essencial de fazer a escolha certa. Por quase sempre se guiar por seus próprios desejos, por seus próprios impulsos, por sua própria vontade, elegendo-os em detrimento da razão — e ainda que haja as escassas circunstâncias em que priorize a razão, assim mesmo o homem encontra um meio de subvertê-la em nome de suas idiossincrasias —, é que o homo sapiens será a espécie mais desditosa já vista.
Kosinski destrincha em linguagem cinematográfica o texto do americano George Saunders, autor do conto “Escape From Spiderhead” (“fuga de Spiderhead”, em tradução literal, sem edição em português), publicado em 2010, o diretor toma um centro de pesquisas onde as cobaias são presidiários que se oferecem voluntariamente a fim de que se desenvolvam novos medicamentos, voltados a suprir a falta de emoção na vida de pessoas comuns. Por trás de intenções tão aparentemente inócuas, quiçá abnegadas e salvíficas, há, claro, o propósito oculto, mas nem tanto de, num futuro próximo, domar o comportamento dos menos obedientes e manter seus ímpetos sob vigilância implacável. Aludindo a “1984”, a profética obra-prima de George Orwell (1903-1950), os personagens estão sempre sob o escrutínio rigoroso de câmeras, que registram tudo, principalmente quando se sujeitam, voluntariamente, aos experimentos de Steve Abnesti, o milionário que patrocina toda a loucura, e a comanda ele mesmo, com mãos de ferro. Numa tentativa desesperada de novamente fazer por merecer papéis dramáticos e, afinal, elevar sua carreira a um pavimento superior — como quase fizera cerca de uma década antes em “Rush — No Limite da Emoção” (2013), Chris Hemsworth, está confortável no papel do vilão, verossímil e destilando o charme de sempre, a exemplo do que se viu no filme de Ron Howard, a ponto de empanar o bom trabalho dos coadjuvantes e, esticando um tanto a corda, a própria história, boa adaptação da naturalmente infilmável pena de Saunders, roteirizada por Rhett Reese e Paul Wernick. Obedecendo a uma sequência de 25 experimentos, prosaicamente organizados numa cartela de bingo — aqui se faz necessária boa dose de licença poética da parte do respeitável e paciente público —, falta a Abnesti testar apenas a substância denominada N40, a que tornaria possível a comercialização de uma droga que faria com que as pessoas se apaixonassem. O experimento, que conta com a participação de Jeff, vivido por Miles Teller, avança sem maiores empecilhos, até que Heather, de Tess Haubrich, revela-se muito mais resistente que o previsível. Esse era o gatilho que ainda faltava por ser disparado a fim de demover o personagem de Teller a continuar sua permanência na equipe; no vácuo desse movimento, se aproxima de Lizzy, interpretada por Jurnee Smollett, por quem se interessa sem a interferência de artifícios de nenhuma sorte.
Kosinski tem sido das apostas que fazem com que seja indicado como um dos diretores de futuro mais auspicioso em sua geração, e trabalhos complexos e divertidos em igual proporção, a exemplo de “Spiderhead” deixam isso muito claro. Amalgamando a direção de atores à manipulação de efeitos visuais para ninguém botar defeito, o filme reivindica, no mínimo, o epíteto de perturbador. Aqui, uma franquia cairia bem.
Filme: Spiderhead
Direção: Joseph Kosinski
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Ficção científica/Mistério
Nota: 9/10