Não é motivo de surpresa para ninguém o rastro de comoção deixado pelos filmes argentinos. Histórias banais à primeira vista, mas dirigidas com todo o zelo; um elenco diligente, atento às minúcias dos roteiros, cuja ousadia delirante fascina e transtorna; e a qualidade de elementos também afetos à técnica como fotografia e edição, fazem a festa de cinéfilos dos quatro cantos do globo, que já começam a acusar a falta dessas produções quando de um hiato um pouco mais estendido. Certamente o olhar atilado que os argentinos têm quanto aos mais diversos assuntos, sobre os quais depositam comentários repletos de fina ironia, sarcasmo, notas de autodepreciação e um desdém sutil pelo que se passa além de seu quintal, dá sua boa parcela de contribuição na conquista e no fortalecimento de um público ávido por alguma sinceridade num mundo tomado pela fragilidade das aparências, das certezas néscias e presunçosas, da hipocrisia daninha do politicamente correto. O cinema argentino sabe como poucos o meio de empregar essa matéria-prima para compor trabalhos densos, perturbadores, inquietantes, capazes de balançar as convicções mais cegas.
“A Ira de Deus” (2022) sacia a fome do público por boas-novas nessa seara. Suspense de extração argentina típica, pródigo em contrastes e contradições, o filme de Sebastián Schindel desvela o que está oculto em crimes cheios de mistério, causa pela qual uma mulher decidida vai até o limite de sua razão. Essa mulher, Luciana Blanco, de uma Macarena Achaga ela própria todo enigma, toma parte no ciclo de mortes que vitima toda a sua família. Luciana não tem certeza de nada, a não ser que Kloster, o escritor de romances policiais para quem trabalhara como digitadora, é o culpado. Esse candidato a vilão, interpretado com um distanciamento exasperante por Diego Peretti, disfarça o quanto pode suas intenções e seu contra-ataque ao golpe da ex-funcionária, que o acusara de assédio sexual movida pela ganância de uma advogada inescrupulosa. Na esteira da acusação de Luciana — que Kloster tenta reparar mediante o pagamento de uma indenização de quase dois milhões de pesos (cerca de 75 mil reais), recusada por ela —, Mercedes, a esposa do personagem de Peretti, vivida por Monica Antonópolus, dá vazão a um pensamento tresloucado envolvendo a si mesma e a filha dos dois, Pauli, de Juanita Reale, que decerto fará o marido pagar por sua falta. Algum tempo depois, se sucedem as mortes que cercam a vida de Luciana: primeiro Ramiro, de Santiago Achaga, o irmão que trabalha como salva-vidas na praia em que a família mantém uma casa; depois os pais, envenenados pelos cogumelos usados na torta que a mãe prepara desde sempre em comemoração ao aniversário de casamento dos dois; e o outro irmão, médico, espancado até a morte antes de começar o plantão por supostamente ter se envolvido com uma mulher comprometida. Todos eventos estranhíssimos, como se vê.
O roteiro de Schindel e Pablo del Teso, livremente adaptado de “A Morte Lenta de Luciana B.”, de Guillermo Martínez, publicado no Brasil em 2007, ressalta com propriedade a inverossimilhança das mortes, cujos desdobramentos o jornalista investigativo Esteban Rey, de Juan Minujín, passa a acompanhar de perto. O diretor, que pelo visto tomou mesmo gosto pelos suspenses psicológicos centrados em famílias aparentemente normais, a exemplo de “O Filho Protegido” (2019), faz de “A Ira de Deus” um trabalho mais apurado do ponto de vista analítico, deixando margem para o espectador levantar seus próprios palpites — se conseguir, uma vez que os segredos estão amarrados de tão modo que qualquer conclusão ligeira é temerária. No segmento final, quando a cena mostra que Luciana perdeu todos, inclusive a irmã caçula, Valentina, participação curta, mas marcante de Ornella D’elia, que resta viva, se esclarecem as reais intenções do escritor, que se pode entender, mas nunca justificar. O título alude à vaidade de um homem que por ter nas mãos o destino de gente que só existe para si e para quem a consegue imaginar, se deixa tomar pelo insano desejo de uma vingança bestial. Deus e o diabo se batem numa disputa por cada pedaço de uma alma já perdida.
Filme: A Ira de Deus
Direção: Sebastián Schindel
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10