Os estudiosos normalmente usam como classificador do estágio social humano a matéria prima básica da ferramenta de cada período. A saga do homem moderno começa com o desenvolvimento de objetos a partir da pedra. No seu primeiro momento, Lascada; e depois, Polida. É claro que paralelamente ao uso da pedra usava-se a madeira, o osso, a pele, a pluma, a lã, a argila, o fogo. Mas o que conta é o material da ferramenta-base e predominante que era feita de pedra. Na Idade da Pedra Polida, nossos ancestrais implementaram importantes contribuições ao processo civilizatório: a domesticação de animais, a agricultura e os primeiros assentamentos humanos, constituindo-se cidades incipientes. Lembrando que a primeira cidade murada foi Jericó, no vale do Jordão. Mas os muros eram tão fraquinhos que os invasores os derrubaram a toque de trombetas. A roda bem que poderia ter surgido num dos períodos da Pedra, mas não há nenhum achado arqueológico que possa comprová-lo.
Seguiu-se a Idade do Cobre, mineral supostamente descoberto pelos oleiros sumérios — povos que habitavam uma região onde hoje fica o Iraque. A mais antiga ferramenta desse material descoberta pelos arqueólogos foi um martelo. Mas, rapidamente, (cerca de 3500 anos depois) foi adicionado, por acaso, o estanho ao cobre e deu origem à Idade do Bronze. Essa liga melhorou consideravelmente as ferramentas de então, por ser mais maleável do que o cobre enquanto aquecida e ter uma dureza maior quando em temperatura ambiente. Armaduras, espadas, escudos, aldravas e grilhões são descobertas desse período. Veio depois a idade do ferro, com grande impulso à agricultura, à caça, à pesca e à arte da guerra. O Império Romano dominou plenamente o ferro e tratou a ferro e fogo as regiões conquistadas. Os Templos de Davi e Salomão foram erigidos na Idade do Ferro, mas usaram basicamente pedra, madeira e cobre trabalhados pelos artesões de Tiro, — um império antigo situado onde hoje fica o Líbano.
A Revolução Industrial, a qual sentimos muito próxima de nós, se deu com a liga de ferro e carbono, que vai se firmando como a Idade do Aço. Hoje vivemos um tempo de ligas impensáveis para nossos antecedentes. Mas a liga dominante, creio, é a de plástico, uma liga orgânica de uso infinito, retirada do petróleo pelo processo de craqueamento. Talvez estejamos vivendo a Idade do Plástico, que é uma liga ubíqua: está em tudo e em toda parte. No futuro, se houver futuro, os arqueólogos não terão dificuldades em comprovar sua prevalência, pois o plástico é mais durável à digestão da natureza do que o aço.
Como pudemos observar, o desenvolvimento dos materiais e das ferramentas acontece num processo de acumulação. A pedra polida não eliminou a pedra lascada, o cobre não exclui nenhuma das pedras, o bronze não dispensou o cobre, o ferro não baniu o bronze, o aço não dispensou o ferro, nem o plástico dispensou o aço.
Esse processo, por mais artificial que nos pareça, segue à risca o modelo biológico da evolução das espécies. O nosso cérebro, por exemplo, vem sendo moldado por revestimento de novas camadas mais consistentes, de “ligas mais evoluídas”, desde quando surgiu o primeiro sistema nervoso central nos peixes primitivos.
O cérebro rudimentar do peixe ganhou novo revestimento para atender à necessidade dos anfíbios. Ou os anfíbios teriam surgido para atender às necessidades de um cérebro mais encorpado? O cérebro dos anfíbios, como o sapo, ganhou nova camada para abastecer uma espécie mais ladina, que é a dos répteis, como o jacaré. Aquele cérebro, por sua vez, ganhou nova demão de reboco de massa encefálica para atender às aves, como o galo e o papagaio.
Uma nova demão foi dada ao cérebro das aves para atender a uma nova especificação, a dos mamíferos, como o jumento e o cão. Daí uma demãozinha nova ganhou aquele cérebro para ser instalado no Homo Sapiens, com os atributos do raciocínio lógico, da abstração, da linguagem complexa, da associação de ideias, do senso de religião, da consciência de si mesmo e todas as possibilidades mentais de que o homem é dotado. Mas, do mesmo modo que as idades das ligas de nossas ferramentas, a constituição de um novo módulo do cérebro não eliminou os módulos antigos. O cérebro é uma arquitetura de puxadinho. Quando os psicólogos buscam compreender o comportamento humano a partir das pesquisar dos zoólogos, estão apenas buscando em nós mesmos as nossas reações mais remotas, em nossos cérebros ancestrais. Temos embalados na mesma cachola o cérebro do tubarão, do sapo, do galo, do jumento e por fim o nosso, que segundo os neurologistas, ainda tem muito espaço para ser utilizado. Os cômodos estão lá, mas sem a devida ocupação. Ou seja, ainda temos muita folga para o crescimento como espécie, se nossa inteligência não for superada pela força bruta da estupidez animal.
Insta aventar que são tantas as ameaças que nos espreitam pelas frestas da existência que corremos o risco de não aproveitarmos plenamente essa última demão de fosfato com que fomos brindados. Nem vou lembrar aqui do exaurimento do planeta, do emporcalhmento das águas potáveis, da desertificação dos solos, do estiolamento dos biomas, da erosão genética, do aquecimento global, da elevação dos mares, do excesso de contingente, ufa! e de tanta coisa mais.
Há uma outra mazela que nos ronda, que é tão cara à nossa idolatria aos mercados globais, que é a transformação do cidadão (ser consciente) em consumidor (ser impulsivo). Não é sem propósito dizer que várias situações nos impõem a regressão mental. O pânico, por exemplo. Vejo hoje que o comportamento das pessoas apinhadas na grande cidade é muito mais animalesco do que quando vivia no sertão quase baldio, com todo mundo buscando amparar um ao outro.
O sonho do Marketing é operar uma regressão em nossa capacidade neural até perdermos a racionalidade por completo. Por meio da propaganda, somos estimulados a esquecer nosso lado racional e assumir em nossas atitudes o cérebro de sapo. O sapo só se interessa por alguma coisa que tenha movimento, que mexa na sua frente. O sapo é cinestésico, audiovisual. O consumidor é o sapo dos marqueteiros.
Reduzidos à inércia mental pelo bombardeio de informações sem valores e pelas necessidades inventadas, nos tornamos anfíbios e passamos a nos interessar pelas coisas que se movimentam à nossa frente. As mercadorias estão o tempo rebolando na TV, no computador, no celular, nos outdoors, nos displays, nas vitrines, em toda parte. As mercadorias são strippers nos seduzindo ao consumo desenfreado. Para o homem contemporâneo, consumir se torna às vezes uma necessidade mais compulsiva do que o sexo. Quando isso ocorre é o clímax do capital.
Essa regressão metal é a segunda queda do ser (contando que houve uma bíblica, no Jardim do Éden). Abdicando de sua condição de Homo Sapiens, regride a seu sapo ancestral, numa espécie de servidão ávida e alegre ao deus Mercado. E nossa capacidade de pensar, crítica e racionalmente, vai para o brejo. Para o homem, deixar de refletir é uma forma de abdicar de sua condição e se reduz a mero tubo digestivo do sistema econômico.
Esta é também mais uma forma de colocar a espécie em risco, impensadamente.