Jamais compraria um carro usado por Saramago Wikimedia Commons

Jamais compraria um carro usado por Saramago

Apesar do metaverso, ainda existem sebos de rua, e existem livros que iluminam o mundo.  Encontrei “O Túnel”, de Ernesto Sábato num sebo da Praça Tiradentes.  Li em dois dias. Quando se tem afinidade com o escritor a coisa flui, e os grandes encontros acontecem. Cria-se uma intimidade automática, e o prazer de ler é redobrado pelo surgimento de uma espécie de amizade. Espécie não, amizade mesmo. De outro jeito, não acontece. Comigo não.

O prazer de desfrutar de um bom livro é o mesmo de desfrutar da companhia de um bom amigo, ler por obrigação é algo tão sem nexo e esdrúxulo como ser obrigado a cultivar uma amizade. Uma coisa, porém, é ser amigo da obra. Outra, completamente diferente, é ser amigo do autor. Ainda que o autor da obra seja seu amigo pessoal. A propósito, tenho um ótimo amigo que é escritor, mas não gosto dos livros que ele escreve, não descem.

Certa vez fui convidado a resenhar um livro premiadíssimo escrito por ele. Dei uma passada d’olhos e, como suspeitava, confirmou-se o respeito e a amizade que cultivávamos há quase vinte anos. Não desceu mesmo. Declinei.  Bom dizer que ele também, graças a Deus, detesta as coisas que escrevo.

Bem, parece que ficou evidente que o fato de uma obra “não descer” é algo puramente pessoal, tanto faz se é de amigo ou desafeto, morto ou vivo. Nada tem a ver com a suposta qualidade ou com os supostos defeitos — da obra e do autor. Felizmente, literatura não é prova de cem metros rasos nem troca de gentilezas com amigos, ou arena de confronto com inimigos, embora possa ser tudo isso ao mesmo tempo.

Nossas escolhas, portanto, são arbitrárias e pessoais. E, em sendo assim, urgem duas perguntas: tais escolhas podem ficar restritas apenas a uma singela questão de empatia?  Ou essas escolhas também poderiam espraiar-se em interesses nebulosos e paixões incontroláveis?  Sim e sim. As duas coisas.

Além das delícias das arbitrariedades, temos o agravante de que vivemos em sociedade: compramos, cambiamos, às vezes auferimos lucros e quase sempre contabilizamos prejuízos colossais, por cima e por baixo dos panos, o tempo todo. Reconheço a grandeza de Clarice Lispector e James Joyce, mas não tenho afinidade alguma com eles. Não ficaria à vontade tomando um porre com essas figuras, e jamais compraria um carro usado por Saramago. Dificilmente seriam meus amigos. Saramago nunca, nem quando vivia e muito menos depois de morto. Literatura, na minha nada modesta opinião, é o amigo que o pega pelo braço, e lhe conta uma história que interessa a ambos, foi assim que conheci John Fante. 

Sábato, por exemplo — apesar do antagonismo que mantinha com Borges — desfruta de minha amizade. Borges também é um bom amigo, e a mesma coisa vale para Cortázar, que não era engolido por Borges que por sua vez não o engolia. Acredito que ambos tinham motivos mais do que suficientes para não se bicar: de um lado o homem condecorado por Pinochet e, do outro, o entusiasta de Guevara — que no auge de uma paixão de hospício chegou a dedicar ao açougueiro de Sierra Maestra um poema belíssimo cujo título é “Yo tuve um hermano”.      

Fico a imaginar Borges e Cortázar vivendo em nossa época, e frequentando redes sociais…

O fato de o primeiro ser um coxinha e autor de “O Aleph” e, o outro, um mortadela que pariu “Rayuela” certamente não soaria irrelevante para as respectivas torcidas uniformizadas, e muito menos para eles mesmos.

É neste ponto, exatamente neste ponto onde se cruzam os supracitados interesses nebulosos, e as paixões de hospício, que tenho algo a dizer.

É precisamente neste lugar que a boa literatura, apesar de todos os defeitos, incontinências e misérias de quem a produz, prevalece. Como e por quê? Não sei. Trata-se de algo que vai além da razão e da lógica, e dos interesses e das paixões que movem a razão e a lógica, algo que extrapola quaisquer explicações e conveniências humanas. Falar em paradoxo é café pequeno. Somente a esfera sobrenatural poderia dar conta de explicar o resultado desta intersecção.

Daí que acredito em milagres.

Sim, isso mesmo, milagres. Que acontecem até mesmo e sobretudo para quem não acredita em nada. O ceticismo e a aparição de Isaac Asimov, por exemplo, seria um milagre tão fulgurante para os cínicos e incrédulos como foi a aparição da Virgem para os três pastorinhos de Fátima. O encontro e o respectivo acerto de contas entre Borges e Sábato é resultado visível e palpável de um milagre, e está documentando no excelente volume “Borges/Sábato: Diálogos”. Em seguida, outro milagre reconfirmado: “O Túnel” — livro de Sábato — encontrado num sebo da praça Tiradentes, vizinho da lendária gafieira Estudantina.

A literatura ocorre no bojo (primeira vez na vida, ao longo de vinte e dois anos, desde o primeiro livro publicado em 1998, que escrevo “no bojo”) das maiores fraudes e torpezas humanas, é o exemplo do milagre que pode ser atribuído aos homens, e auferido pelos homens. Acredito, portanto, que a literatura é o mais imerecido e improvável, por isso mesmo o mais surpreendente e maravilhoso dos milagres.

Mas quem lê?

Vivemos num mundo onde as pessoas criaram hábitos anti-literários, viraram hologramas e ração de algoritmos. Vivemos na era dos analfabetos funcionais/ digitais cheios de marra, gente boçal e histérica que consome lixo e que nunca vai reconhecer, e jamais vai acreditar em milagres: simplesmente porque não precisam de milagres, pois são zumbis que perderam a transcendência e se retroalimentam das próprias inexistências.

Para terminar, recomendo um milagre, um amigo e a leitura de suas crônicas, nem vou falar das peças para não explodir a cabeça da zumbilândia. Trata-se de Nelson Rodrigues. Um milagre único, latente e necessário em qualquer época, lugar e circunstância, creio que até os algoritmos comedores de zumbis sentem-se constrangidos de existir na presença dele. A Cia das Letras reuniu as crônicas em cinco volumes: “A Menina sem Estrela” “O Remador de Ben-Hur” “Confissões” “A Cabra Vadia” e “O Reacionário”.

Tenham todos um ótimo final de semana.