O medo de morrer nos mata por antecipação

O medo de morrer nos mata por antecipação

Toda atividade humana tem como função básica livrar-se das garras da morte. É para não morrer que a gente dorme, que a gente se levanta, que a gente ama, que a gente estuda, trabalha, xinga, blasfema, reza ladainhas, faz discurso na praça, arruma um ponto de mínimo conforto nas engrenagens da sociedade e acaba por constituir um diferencial, uma persona, uma identidade única no meio de tantas criaturas semelhantes. A morte é a alavanca propulsora de toda energia vital. 

Para não morrer, você se converte a uma fé supostamente redentora e se dobra diante de um Deus furtivo. Passa a agir, não por si mesmo, mas pelo índex do que pode e do que não pode, segundo os dogmas de sua seita, na fervorosa ilusão de que morrendo fisicamente na fé haverá de ressurgir eternamente na graça do Deus glorificado. Em outras palavras: por medo de morrer, você acaba morrendo um pouco por antecipação.

Para não morrer, você espreme os miolos até encontrar uma ideia genial e inventar um treco sui generis que caia no agrado do consumidor e vá vender feito pão fresco às três da tarde. E a venda dessa coisa há de deixá-lo podre de rico (que podre de pobre não tem o poder de afugentar a morte) de tal sorte que possa encomendar o iate mais longo do mundo, possa arrumar para deleite as pessoas mais cobiçosas que possa haver, comprar a mansão com cômodos a sumir de vista (ainda que seu corpo para desfrutá-la seja um só) juntar na extensão da garagem os carros mais desejados da terra, mesmo que você jamais terá tempo de se sentar no cockpit de um bólido desses e ziguezaguear pelas ruas do bairro ou pegar um estrada sem rumos e curtir a  paisagem na magia do entardecer.

Mas ao virem você movimentando com desenvoltura por entre tamanha tranqueira, as revistas de fofoca, as colunas de jornais e outras frívolas comunicações haverão de proclamar que você é um dos tais que venceu na vida e quem vence na vida tem a nítida sensação de haver afugentado a morte para o estrangeiro. Lembre-se. Para os dias de hoje, vencer na vida nada mais é do que juntar tranqueiras.     

Para não morrer, você se entulha de compromissos, cada um mais vazio do que o outro. No entanto, correndo assim de agenda cheia, terá a sensação de elevada importância nos acontecimentos sociais. E quem está tão cheio de compromissos e ocupações não será por certo agredido pela foice da morte. Ou porque você é muito importante para ser suprimido do quadro dos acontecimentos, ou porque você se distrai da “indesejada das gentes” e, uma vez se achando distraído, ela poderá até se esquecer de você. Ou você não é daqueles que pensam que o acaso vai lhe proteger enquanto andar distraído?  

Para não morrer, você se acasala e constitui prole, e espera dela, no esgalhamento, que venham netos, bisnetos e tudo o mais. E assim na sucessão das gerações, na memória daqueles que de você provêm, haverá de permanecer vivo, como um fantasma precursor, já sem carne, já sem ossos, já refeito, ou melhor, quase desfeito, na vaga lembrança dos descendentes. Porque uma vida só não lhe é bastante. É preciso se esticar para marcar fortemente sua passagem no mundo.

Para não morrer é que você espreme seu cérebro já constipado pelo tempo e pelo mau uso, buscando algumas gotas que possam expressar o inexpressável, aquilo que se sente num leve vagar, mas que a palavra se furta a construir um sentido minimamente palatável, diante da confusão de tanta coisa, de um mundo fracionado e quebradiço, que não se deixa ser abarcado por uma noção de sentido. 

Para não morrer, você se imiscui nas entidades sociais, classistas ou culturais e exigem que lhe ergam bustos, que lhe afixem retratos nos murais, que lhe atribuam nomes de auditórios, bibliotecas, ruas e logradouros, até que de você mesmo ninguém se lembre mais, no entanto seu nome permaneça ali, numa lembrança deslembrada, numa forma precária de não estar morto, gozando do mais vivo “anonimato público”.

Tudo para fugir da morte.

Edival Lourenço

Escritor.