Muito possivelmente foi o novelista russo Liev Tolstói (1828-1910) a elaborar a história de amor mais melancólica que já existiu. Não por coincidência, o caso entre Anna Kariênina, mulher de um alto comissário do czar Alexandre II (1818-1881), com um oficial de cavalaria do exército, um escândalo fictício junto à aristocracia da Rússia imperial, foi levado à tela cinco vezes, entre 1935 e 2012, sempre sucesso de público e crítica, tamanha atenção o tema desperta. Tolstói enfrenta uma concorrente de peso quando o assunto é escandalizar almas pias diante de amores malfadados. Na Inglaterra de 1840, uma jovem se submete a pior das escolhas e casa-se com um homem para livrar sua família da fome iminente. Ninguém que comete uma insânia dessas, movido pelo desespero, espera viver bem, nem consigo mesmo, nem em sua nova condição, mas o fado se lhe apresenta especialmente perverso. Tudo adquire um tom meio indefinido, borrado, sombrio, perdido entre o cinza e o negro, mas o pior é que não há muita margem para se buscar final feliz para essa história. Uma vez que se entra nesse carro desgovernado, não se desembarca sem ferimentos graves.
A sorte da mulher já foi ainda mais tristemente limitada, em boa parte por causa do respeito aos costumes do século 19. “Effie Gray: Uma Paixão Reprimida” (2014), drama romântico do britânico Richard Laxton, retrata um casamento pautado pelo fracasso, desde antes de começar. Aliviando o clamor das onipresentes feministas, pode-se dizer que a escocesa Euphemia Chalmers Millais (1828-1897), antes Euphemia Ruskin, a Effie Gray do título, fora apenas mais uma mulher vítima da subjugação duplamente atroz da sociedade de seu tempo, que determinava que mulheres nunca deveriam passar de certa idade solteiras, sendo compelidas pela própria família a arrumar casamento, qualquer casamento, com um homem que as pudesse sustentar — e só. Por outro lado, há que se dizer, claro que Effie era já crescidinha o suficiente para saber onde estava se metendo, malgrado as particularidades de sua união com o crítico de arte e artista plástico britânico John Ruskin (1819-1900) terem superado qualquer péssima expectativa. O Ruskin de Greg Wise, brilhantemente desenvolvido, decerto espelha o que fora o Ruskin da vida real, um homem esnobe, excessivamente autoconfiante, gélido, agradável de se ver a distância em sua beleza fria, tratado a pão-de-ló por uma mãe patologicamente amorosa, Margaret, da também muito boa Julie Walters. Não se chega à idade adulta cercado de tanto paparico impunemente, e Wise tem seus momentos de gênio na pele do personagem. Não é para qualquer um levar um tipo como Ruskin em banho-maria ao longo de quase duas horas, sem deixar que a fervura extravase; isso fica a ponto de acontecer justamente no ponto de virada do roteiro de Emma Thompson, que dá vida a lady Eastlake, a confidente da anti-heroína, sobrevivente de uma união congênere. Ciente do envolvimento da mulher com John Everett Millais, um seu pupilo que passa a fazer tudo (ou melhor, quase tudo) em companhia do casal, Wise ameaça ceder aos humanos impulsos, como dar-se-ia com um homem comum, mas Ruskin está alguns centímetros acima da pedestre humanidade, para o bem e para o mal. É difícil conceber o que pretenderia aquele sujeito especialmente perturbado, quiçá ainda mais desorientado por décadas de uma influência materna castradora. Talvez ele soubesse desde o princípio que não poderia consumar o matrimônio com mulher alguma — a cena em que Ruskin foge à esposa, despida, na noite de núpcias, sem alarde, pensando que assim não a magoaria, é muito simbólica de sua imaturidade destrutiva —; mesmo assim se escandaliza com um ínfimo movimento de Effie para fora do que julga a função de uma companheira exemplar, e, por fim, demonstra parte de sua ira e de seu orgulho viril ao farejar um possível adultério, tanto pior se com um homem de sua confiança.
Esse outro casal também inicialmente condenado, a Effie Gray vivida por Dakota Fanning e o Millais de Sturridge, se mantém firme a despeito da ubíqua maledicência não sem que experimente uns tantos dissabores por isso. Na direção oposta, mas muito afinada com Wise, Fanning demonstra segurança extrema ao se jogar de cabeça e sem nenhuma rede de proteção para um personagem que lhe exige tudo. A protagonista transmite a agonia de uma jovem mulher que se descobre presa na arapuca que construiu para si mesma, ao passo que começa a devotar a vida para fugir a um destino tão ingrato e, entende ela, injusto — isso quando não está sendo perigosamente sabotada por Margaret, que lhe ministra doses homeopáticas de veneno para vê-la mais e mais prostrada, domesticada feito uma besta de circo.
São óbvias as inspirações de Laxton em obras paradigmáticas do cinema que se espraiam sobre o tema de maneira perturbadoramente funcional, como “Rebecca, a Mulher Inesquecível” (1940), dirigido por Hitchcock, e “Uma Mulher sob Influência” (1974), levado à tela por John Cassavetes (1929-1989), e o filme por seu turno espelha-se em trabalhos posteriores, caso de “A Garota Dinamarquesa” (2015), de Tom Hooper, que se complementa a “Effie Gray”. Enquanto na história de Einar e Gerda Wegener sexo nunca foi problema, embora o personagem de Eddie Redmayne fosse mesmo homossexual — e se descobrisse, na verdade, uma mulher transexual —, a suposta homossexualidade de Ruskin nunca sai do casulo, preservando-se sua hombridade. Talvez o problema do personagem fosse ainda mais profundo, e chafurdasse na lama negra do crime, com inclinações recalcadas de uma provável pedofilia. Especulações à parte, o fato é que os três seguiram estigmatizados e ultrajados pela vida afora, e a história dessas uniões permanece marcada pelo ferro em brasa da hipocrisia.
Filme: Effie Gray: Uma Paixão Reprimida
Direção: Richard Laxton
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10