Ganhador do Oscar, filme magnífico com Winona Ryder e Angelina Jolie está no catálogo da Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Ganhador do Oscar, filme magnífico com Winona Ryder e Angelina Jolie está no catálogo da Netflix

O que terá a primazia, a loucura sobre a solidão, ou, ao contrário, a solidão, quando pungentemente intensa e à prova do tempo, acaba se metamorfoseando em algo ainda mais nefasto, como a doença mental? A verdade é que a saúde psíquica de uma pessoa está diretamente ligada à quantidade de vínculos que ela é capaz de estabelecer ao longo da vida, malgrado existam aqueles que vivem muito bem no seu próprio mundo, desfrutando de uma condição particularmente cômoda: têm a capacidade de interagir com quem quer que seja sem abdicar de ter seus muitos momentos de retiro consigo mesmo, e tampouco ceder a qualquer espécie de psicopatologia. Estar em paz com seu próprio espírito, entender-se, e antes de mais nada, conhecer-se é um pressuposto do qual não se pode prescindir quanto a conservar o bom estado da mente, que acaba por se refletir na alma e transborda para o corpo. Para aqueles cujo sofrimento já não responde à terapia de nenhuma natureza, resta a intervenção de agentes externos, compulsória em muitas circunstâncias, recurso que tem, sim, efetividade, não obstante o estigma que instituições psiquiátricas carreguem ainda hoje.

Na primavera de 1967, Susanna Kaysen, a personagem de Winona Ryder em “Garota, Interrompida” (1999), vai parar no que até não muito tempo atrás se chamaria de hospício — palavra cancelada pelo politicamente correto, que acha que cancelar manifestações genuínas de certos fenômenos, inclusive linguísticos, resolve problemas os mais complexos —, mas um hospício de luxo, Claymoore. Susanna, no último ano do colégio, deveria estar se preparando para ir para a faculdade, mas resolve misturar um frasco de aspirina a garrafa de vodca num coquetel mortífero que quase liquida sua figura pálida, excessivamente magra, doentia. É diagnosticada com transtorno de personalidade limítrofe pela doutora Sonia Wick, uma psiquiatra que nunca vira antes, personagem de Vanessa Redgrave, mas é a enfermeira-chefe Valerie Owens, de Whoopi Goldberg, quem dá a sentença definitiva sobre o verdadeiro mal de Susanna, “uma garotinha preguiçosa e autoindulgente”, que precisa urgentemente de alguma ocupação que a consuma o bastante para não pensar mais em bobagem.

Susanna é exatamente o tipo de pessoa que se adapta rápido demais a lugares como Claymoore, sem dúvida fundamentais para grande parte dos pacientes que podem arcar com seus custos, mas que também serve, a exemplo do que se dá Susanna, de uma alternativa para parentes pouco ciosos se livrarem de alguém que se torna um peso na vida da família de uma maneira razoavelmente digna. Tomando por base o diário de Susanna Kaysen, cujos relatos verídicos convergem para a conclusão de que ela nunca teve um distúrbio psiquiátrico que a impossibilitasse de continuar privando do convívio social, o roteiro do diretor James Mangold, coescrito por Lisa Loomer e Anna Hamilton Phelan, destrincha boa parte das perdas de Susanna ao longo dos dois anos da permanência em Claymoore. Uma pessoa com problemas, como qualquer outra, é enterrada viva — e enterra-se a si mesma também, que fique claro — num lugar hostil para quem não precisa estar ali, muito menos por tanto tempo, só porque foge à ideia da normalidade vulgar, só porque incomoda, só porque esquisita. Esse excelente argumento do trabalho de Mangold, Loomer e Phelan, se junta à exposição de tipos como a furiosa Lisa, a personagem que deu a Angelina Jolie o único Oscar de sua prolífica carreira como intérprete e diretora, o de Melhor Atriz Coadjuvante, em 2000; Georgina, de Clea Duvall, que pensa ser Dorothy e viver no mundo encantado de Oz; Polly, vivida por Elisabeth Moss, vítima de episódios de automutilação; e Daisy, talvez a pior desse quarteto, uma interpretação dolorosamente realista de Brittany Murphy (1977-2009). O convívio com essas improváveis novas amigas é o que vai assegurar-lhe, de maneira muito parcimoniosa, mas também muito assertiva, que seu lugar, definitivamente, não é em Claymoore. E que precisa descobrir o que faz infeliz e mudar radicalmente a maneira como tem vivido até então. Continuar internada, quiçá para sempre, é mais fácil, mas não é justo, nem consigo mesma, nem com quem necessita mesmo de tal assistência.

Livremente inspirado em “Um Estranho no Ninho” (1975), o clássico de Miloš Forman (1932-2018), “Garota, Interrompida” chega a discorrer sobre temas colaterais, ainda mais nebulosos para época em que se desenrola a trama — feminismo, libertação sexual, drogas, sexo livre —, mas seu grande trunfo mesmo é fazer a questão manicomial, tabu até hoje no mundo todo passados 23 anos, um pouco mais digerível ao grande público. Ryder e Jolie são claro, a cereja do bolo num filme quase perfeito, que carece de um tanto do que Freud denominou como pulsão de vida. É uma história, sem dúvida, mas com margem para alguma especulação de destinos felizes para aquelas moças. Com um pouquinho mais de amor, do amor que transcende o interesse meramente físico, quem sabe.


Filme: Garota, Interrompida
Direção: James Mangold
Ano: 1999
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.