Talvez a fé seja um efeito colateral da razão e o delírio um efeito colateral do conhecimento. Quando não sejam efeitos colaterais, pelo menos partes compensatórias. Como alguém que sendo reconhecidamente belo, rico e inteligente, em compensação seja portador de um mau hálito sem remédio.
A consciência foi o modo pelo qual a natureza, por meio do processo evolutivo, encontrou para se ver, para buscar o seu entendimento, para se decifrar a si mesma. O portador desta faculdade, o Homo Sapiens, somos eu, você, o doidinho da carrocinha, o papa, o magnata do petróleo ou da informática, a top model que faz de seu passo de ganso a sua razão de viver, o barnabé que faz escrever num papel chamex grudado na parede advertindo tratar-se de autoridade e que zoar com ele pode dar encrenca. Todos nós que somos parte desta rica e tão ridícula fauna.
Os outros seres vivos se dão por contentes em simplesmente viver. Nós, além de viver, queremos transcender. E, nessa ânsia pelo transcendente, temos, ao longo de nossa saga, edificado monumentos substanciais ao delírio. Em nome da transcendência foi que os faraós egípcios escravizaram seu povo e povos vizinhos, gerações após gerações, para erguerem suas tumbas piramidais. Cada qual mais ampla e fenomenal.
Antes das pirâmides e depois delas, a História tem sido tracionada muito mais pelos delírios humanos do que mesmo pela nossa propalada razão. Temos a superstição de que somos predestinados a conquistar a Terra, comer a fruta e chupar a caroço, aprontar um regaço e fazer um oco, e ainda saltar fora como a borboleta cintilante com seus vidrilhos e lantejoulas, abandonando a pupa gosmenta e repugnante.
Essa noção alimentou o platonismo e a cristandade. Essas correntes de ideias sempre sustentaram que o homem não é deste mundo. Que o homem é de argila, mas tem um sopro divino, um plus, algo mais metafísico, aparentado com o suprassumo eterno e onipotente.
Há uma passagem emblemática no cristianismo, que sintetiza bem essa noção do poder transcendente, porém com a final submissão ao destino que é próprio dos seres humanos, “bicho da terra tão pequeno”, como apregoou o poeta Camões. Refiro-me à história de Judas Iscariotes. Naquele tempo o Império Romano impingia a seu povo uma vida dura, de muito trabalho, muita exigência, disciplina rígida. Orientados pelas velhas profecias, os ansiosos por uma vida nova buscavam em Israel um Messias, aquele que viria para livrar o povo não apenas do jugo do Império Romano, mas do jugo da condição humana, que sempre foi e sempre há de ser precária.
Como havia no mercado uma demanda superaquecida por salvadores e a demanda é quase sempre geradora de produtos para atendê-la, havia em Israel mais de 100 grupos de desocupados ao redor de um pregador, se fazendo passar pelo novo salvador dos povos oprimidos, aquele cujo reino não era deste mudo. Viviam escamoteados no meio do povo, subvertendo a ordem.
Esse Judas era o tesoureiro de um desses grupos. Tesoureiro é eufemismo. Na verdade, era o esmoler, o pedinte mais cara dura, aquele que abordava as pessoas pedindo “uma pratinha pelo amor de Deus, qualquer valor serve”. Com tanta gente pedindo ajuda e o poder central garfando o povo nos impostos para manter as orgias em Roma, não devia ser nada fácil levantar recursos para sustentar os grupos. O grupo, ao qual Judas pertencia, era constituído de pelo menos 13 pessoas: um líder e 12 liderados: agricultores, biscateiros, pescadores etc. O próprio líder, um certo Jesus da Galileia, era carpinteiro drop out, profissão aprendida com José, o pai postiço. Afora isso, era mágico amador e orador clandestino: transformava água em vinho, assustava pessoas ressuscitando mortos, deliciava outros andando a pé sobre as águas e falavas de um novo reino que se avizinhava. Como mágico, tinha também sua manha de escapar das unhas dos guardas romanos, que estavam sempre perseguindo e aplicando algum tipo de baculejo nos vadios coloniais.
Judas não tinha nenhuma razão para duvidar dos poderes transcendentais de seu chefe. Afinal já vira tanta coisa que só lhe restava mesmo era acreditar. Dentro de sua ingenuidade e ambição, Judas aceitou facilitar a apreensão de seu líder em troca de 30 moedinhas de prata, que na dureza da situação certamente daria para alimentar o grupo por algum tempo de modo mais farto. Isso, além de lhe dar prestígio no grupo, lhe daria descanso do trabalho humilhante por alguns dias. E o melhor de tudo, pensou Judas, sendo o chefe um ser de outro mundo, capaz de milagres extasiantes, na hora que a coisa apertasse mesmo ele faria mais uma das suas e se safava numa boa. E o grupo seguiria o do jeito que teria de ser.
E assim Judas entregou o chefe ao poder romano que precisava castigar alguém como bode expiatório. O chefe foi preso, surrado, crucificado, morto e sepultado. Na cruz, ainda teve tempo de reclamar do Pai que não lhe teria atendido as expectativas. Não conformados com a situação, os seguidores sobreviventes garantiram que o viu ressuscitar dos mortos ao terceiro dia e foi sentar-se ao lado direito de Deus pai todo poderoso que há de vir julgar os vivos e os mortos. Amém. Os romanos aproveitaram e também crucificaram Judas, como sórdido traidor. E como traidor foi que ele entrou para a história do cristianismo.
A ideia de ressurreição é antiga, persistente e de vez em quando recrudesce, mesmo fora do ciclo religioso. Um dos motores ideológicos do regime soviético foi fornecido pelo pensador russo Nikolai Fiodorovitch Fiodorov (1828-1903) para quem o ser humano teria que lutar contra a natureza e libertar-se dela. Dizia mais: que o progresso material seria capaz de livrar o ser humano de seu destino mortal. E quando fosse alcançado esse estágio tecnológico, não só as gerações futuras seriam imortais, mas todas as gerações precedentes seriam ressuscitadas e como mortos-vivos se tornariam imortais. Feroz assim!
Tendo como pano de fundo um pensamento desses, o regime soviético foi um dos mais terríveis contra o ser humano e o próprio ambiente: terra verde virou deserto, rios desviaram de rumo, a matança de pessoas se tornou política de Governo etc. A explosão do reator atômico de Chernobyl foi só um momento simbólico do colapso do regime delirante, aferrado a um fundamentalismo materialista, com pretensões de alcançar a imortalidade e a ressurreição.
Seja pela fé, seja pela tecnologia, estamos sempre alimentando pretensões ser mais do que damos conta. Nos Estados Unidos, nos anos 1980, foi moda as pessoas ricas entregarem os corpos de seus mortos a organizações que prometiam congelá-los e ressuscitá-los mais tarde, quando houvesse tecnologia compatível. A fé cega no progresso não impediu que em poucos anos esses corpos virassem farelo de cristais de gelo. A propósito, projetos salvacionistas sempre vão perpetrando barbaridades cruentas ao longo da história, como as Cruzadas, a Santa Inquisição, o Holocausto Nazista, o Paredão Cubano e tantos outros.
Esses exemplos foram só para dizer que a razão nos coloca no mundo, nos faz viver com harmonia, integração e poesia com a natureza. Faz-nos aceitar a própria condição de seres num processo evolutivo e que, como tais, podemos ser felizes e contentes no tempo que a natureza nos reserva e enquanto batalhamos o nosso meio consciente de vida. Já o delírio nos fatiga, nos coloca em confronto com nossa própria condição, nos atira fora da realidade.
Mas no dizer do escritor norte-americano John Gray, em “Cachorros de Palha”: “Nenhum projeto político (ou religioso, filosófico) pode salvar a humanidade de sua condição natural”.