As características básicas de todo filme de super-heróis são as seguintes: 1) pitadas de humor pastelão, 2) sonoplastia de arrebentar os ouvidos, e 3) excesso de computação gráfica. Em boa medida, são fórmulas para prender um público superficial e pouco exigente, cuja atenção precisa ser fisgada a cada dois minutos, senão começa a bocejar. Não há nada disso no filme “Coringa”, de Todd Phillips (2019). E ainda bem: é o que faz seu Coringa depender mais de 1) suspense, 2) enredo e 3) interpretação — truques que contam mais, para gente grande.
O melhor Coringa de todos os tempos parece ser o do falecido Heath Ledger. Mas o que temos em “Batman: o Cavaleiro das Trevas” (2008) é um perfeito vilão dos quadrinhos, atuando em um universo paralelo e sem fissuras. Joaquin Phoenix, que interpreta Arthur Fleck no filme de Todd Phillips, é outra coisa (e talvez queira ser outra coisa). É digno de nota que o Coringa de Phillips nem sequer se chama Jack Napier, identidade do Coringa original, da DC. Arthur Fleck é um ser humano “normal” em um mundo… quase normal. O único fio que liga o Coringa de Todd Phillips ao personagem homônimo da DC Comics é uma tênue Gotham City, nada espectral e quase sem noite.
Sim, as biografias também se parecem; há lá um cidadão chamado Thomas Wayne, que seria seu pai, e no final há até um garoto que fica órfão de Wayne e prenuncia o Batman, o arquirrival do Coringa do universo DC. Mas essas biografias não interferem nada na escolha estética, e Gotham poderia ser dispensada sem prejuízo. Nem chega a ser uma nódoa, no realismo do filme: exceto a cidade fantástica, mas apenas nomeada, não há aqui notícias de super-heróis e vilões de mentirinha. Joaquin Phoenix, portanto, não precisa interpretar de maneira ortodoxa o Coringa dos quadrinhos porque seu arquirrival, a rigor, nem existe em seu mundo. A história até poderia se passar em São Francisco, não fosse o fato de que coube à concorrente Marvel o mérito de ingressar os mutantes dos quadrinhos no mundo real (Nova York). Mais exatamente, coube a Stan Lee e seu Homem-Aranha, em 1962.
O Coringa clássico é um vilão coadjuvante de Batman, obviamente anormal, mas cuja loucura serve para caracterizá-lo, não para nortear um enredo. Até sua maldade é menos chocante, o que é um paradoxo porque é frio e capaz de arquitetar crimes bem maiores. Já no Coringa de Todd Phillips a doença mental é chave para o enredo, e o protagonista do filme é o próprio vilão. Vilão? É verdade que está mais para um inimputável esquizofrênico vestido de palhaço, fato que nos perturba tanto quanto a sua violência desabrida. E é claro que provoca medo, neste mundo sem Batman: ninguém gostaria de ter ao lado um serial killer. O último que se aventurou, Murray Franklin (Robert De Niro) levou um tiro no rosto e outro no peito. Em pleno talk show!
Arthur Fleck trabalha nas ruas como palhaço e consegue se tratar com ajuda do serviço social da municipalidade. Quando esta retira-lhe o direito os sintomas se agravam e Fleck perde o controle de si mesmo, tornando-se um assassino em série. Se se torna herói da escumalha, não é porque planejou isso. Não pretende ser o rei do crime. É claro que se o estado promete reverter os impostos do cidadão em benefícios e não cumpre a palavra, você é vítima porque está sendo assaltado. A menos que goste de rasgar dinheiro, principalmente dinheiro alheio. Mas Fleck se põe a matar pessoas não por causa de uma sugerida injustiça fiscal e social. Seus problemas são individuais. Ele mata porque é mentalmente transtornado, e nem sequer é a pessoa que mata Wayne, o malévolo candidato a prefeito e possível progenitor.
Por fim, Joaquin Phoenix é brilhante. Pelos motivos alegados, seu Coringa é original, e interpreta um louco numa performance bastante convincente. Leigos não podem enquadrá-lo como se a loucura fosse satisfeita por uns poucos traços. Os manuais de psiquiatria descrevem dezenas e dezenas de afecções, cada qual com seus sintomas característicos: centenas. Melhor acreditar na “preparação do ator”, que emagreceu e deve ter lido e observado o comportamento dos loucos de verdade: a letargia, a ansiedade, a depressão, o descontrole emocional, os reflexos motores, a pulsão assassina… Tudo isso está lá, de sorte que Joaquin Phoenix parece bem natural neste papel. Seu Coringa incomoda-nos mais do que qualquer outro, talvez porque seja mais humano do que os outros.
Sustentou-se sem apelar para piadinhas pré-fabricadas, sonoplastias barulhentas e efeitos especiais irados. Talvez seja um desafio mais complexo para qualquer ator.