Ser mãe é um atentado à racionalidade. Mulheres passam nove meses carregando no ventre uma forma de vida um tanto enigmática, extensão de seu próprio corpo, mas dotada de um organismo só seu. Expirado esse tempo e parida a criança, chega a hora de dar o peito por meses a fio — há quem aconselhe a levantar a amamentação até, pelo menos, os dois anos de idade do pequeno, e, mais surpreendente ainda, há quem o consiga —, depois ensaiar a transição para a mamadeira, que se pretende breve, e nesse ínterim, são gastas montanhas de fraldas e pilhas e mais pilhas de lenços umedecidos. O momento em que o filho se mostra apto a usar o banheiro sem grandes traumas, sempre com a supervisão materna, é a senha para a primeira separação, extremamente angustiante para os dois, cada qual sentindo-a a seu modo. Na escola, aquela criatura por se formar, em constante evolução, começar a aprender que, como ela, há outras dezenas, disputando o mesmo espaço, os mesmos brinquedos, a mesma atenção da professora, a mesma vontade se destacar do restante da classe. Não se passaram nem cinco anos e aquela mulher que se atreveu a gerar uma pessoa, agora com algum grau de independência de seus cuidados e, por conseguinte, também dotada de necessidades muito suas, depara-se com a realidade de que, ao contrário do que pode sugerir o instinto (e o filosofismo barato de certos pseudomanuais de psicopedagogia), filhos se esmeram por se diferenciar de seus pais desde que sentem a luz do mundo estimulando-lhes as retinas incompletas. Reagir positivamente a um tal desaforo da natureza redunda em dois comportamentos básicos, opostos entre si. Algumas mães fingem entender que seus filhos estão, finalmente, crescidinhos, mas terminam por arrastar seus desmandos, bem-disfarçados de amor, pela vida afora, enquanto outras pensam que amar é jamais estimular a autocrítica e a autocensura e supor que seu filho saberá tomar a melhor decisão em qualquer circunstância, que “se vai fazer aquilo que o fizer feliz, e, assim, também o serei”. Invariavelmente, mães percebem meio tarde demais que algumas ideias de seus filhos quanto ao que venha a ser felicidade conduz a todos os caminhos, menos ao da plenitude do espírito. E reparar esse engano é uma tarefa para a qual, muitas vezes, não têm mais força.
Cineastas de não-ficção podem apresentar pontos de vista um pouco menos etéreos para a compreensão de assuntos que restam excessivamente poéticos sob a perspectivas de diretores que sempre tiveram a imaginação por primeiro instrumento de trabalho. O premiado “What Happened, Miss Simone?” (2015), vencedor do Emmy de Melhor Documentário para Televisão em 2016, fez com que Liz Garbus começasse a ser notada por Hollywood. A carreira do longa, uma sequência de excelentes imagens de arquivo da vida e da obra da cantora e ativista Nina Simone (1933-2003), lançado em 22 de janeiro de 2015 no Festival Sundance de Cinema e indicado ao Oscar de Melhor Documentário um ano depois, cacifou Garbus para desafios ainda mais perturbadores. A diretora julgou que talvez fosse a hora de encarar a missão de emprestar seu talento ao cinema ficcional e dessa intenção nasceu o vigoroso “Lost Girls: Os Crimes de Long Island”, em que oferece sua visão para um dos casos não resolvidos que mais aguçou o apetite da imprensa marrom e questionou a eficiência da polícia na história contemporânea dos Estados Unidos. A travessia de um para o outro lado foi quase orgânica, e, por óbvio, Garbus emprega a tarimba no documentário para reforçar a evidência de realidade da trama, dispondo da colaboração do igualmente talentoso Michael Werwie no roteiro, autor do irretocável “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” (2019), levado à tela por Joe Berlinger. Tamanha dedicação se reflete no elenco, liderado por uma Amy Ryan em sua melhor forma.
Nunca se vislumbra na Mari Gilbert de Ryan qualquer vestígio de mansidão, tanto menos de felicidade. Percebe-se logo que essa é uma personagem sempre acossada por uma tensão qualquer — a pobreza severa, a realidade de se saber irrelevante para o resto mundo e não poder contar com o apoio de ninguém, a solidão ferina —, que se apossa de vez dela quando a filha, Shannan, vivida por Sarah Wisser, desaparece como por encanto em Ellenville, cidadezinha no extremo sul do estado de Nova York, em maio de 2010. A última a ter tentado falar com Shannan foi a irmã do meio, Sherre, da cada vez melhor Thomasin McKenzie, o que já é um pequeno sintoma do distanciamento gradual entre mãe e filha ao longo dos anos. A ficha começa a cair e a família se dá conta de que algo de muito funesto ocorrera à mais velha das três filhas de Mari quando a polícia confirma ter recebido uma chamada de emergência na noite anterior. É esse o gancho para que Garbus comece a desembolar alguns fios narrativos do novelo em que o sumiço de Shannan se insere. Embora parecesse aterrorizada, Shannan não contou com pronto atendimento policial, momento em que os embates dessa mãe, tomada de uma culpa que acaba por consumi-la, e o comissário Richard Dormer, outra boa performance, do veterano Gabriel Byrne, levam a história para uma boa crônica sobre a inépcia das autoridades quanto a desvendar crimes que vitimam pobres. A descoberta acidental de um terreno em que foram enterrados os corpos de quatro prostitutas, insinuando a atuação de um assassino em série que comete suas barbaridades movido por idiossincrasias morais, ou apenas ódio mesmo, suscita em Mari uma hipótese e uma convicção, uma mais mortificante que a outra. É muito provável que as duas jamais tornem a se ver e é indiscutível de que o modelo de criação adotado para as filhas, donas de seus próprios narizes (e de todo o resto desde cedo) foi um equívoco para o qual não existe mais margem para reparação.
“Lost Girls: Os Crimes de Long Island” poderia resvalar para o indigesto dramalhão moralista — muitas vezes se tem a sensação de que Liz Garbus vai mesmo se permitir atolar nesse lodaçal, e causa espécie sua capacidade de jogar com as expectativas do público —, mormente com a entrada em cena de Reed Birney como Peter Hackett, o médico que dá todos as pistas de ser o psicopata por trás dos crimes, mas nunca é sequer molestado. Todavia, a diretora é hábil em se concentrar no subtexto emocional de seu trabalho, que alcança o zênite com as informações dispostas numa tela negra, nos segundos finais do longa. A diretora faz desse um filme primoroso, que consegue mesclar quase à perfeição narrativa documental e suspense da melhor extração, que lamentavelmente se encerra depois de magros 95 minutos.
Filme: Lost Girls: Os Crimes de Long Island
Direção: Liz Garbus
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 9/10