Vade retro século 20

Vade retro século 20

Anteontem participei de uma “performance” no Largo da Batata. A garota defecava defronte à Igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat, e comia o próprio cocô. Depois oferecia beijos à plateia. Aceitei. E a beijei. Tinha mau-hálito. Depois do beijo, me dirigi aos curiosos, e proclamei: “Tem mau-hálito”.

A plateia não soube como lidar com a informação, a reação variou entre sorrisos amarelos e nojo. E a garota — até que era bonitinha — evidentemente não gostou do meu comentário, acusou-me de ser um velho reprimido.

Tive de concordar (graças a Deus), e disse que aprendi a beijar imitando as performances do Tony Ramos nas novelas globais dos anos setenta/oitenta. Aliás, se tive um sonho, um desejo na vida, foi esse. Um dia eu ia beijar igual o Tony Ramos. Ato contínuo, a “performer” meio que incrédula e lambuzada de cocô — depois de tomar conhecimento do meu sonho encantado — olhou-me no fundo dos olhos, e perguntou: o senhor come merda?

Respondi: — Igualzinho a você. A diferença entre nós é que tenho um paladar apurado.

Ela contorceu o pescoço, arreganhou a espinha dorsal e os dentes ao mesmo tempo, nisso acrescentei mais uma informação: — Também sou heterossexual.

Quando pronunciei a palavra que não ousa ser dita, ela começou a ter convulsões, e avançou na minha direção. Com a boca lambuzada de cocô em tom de ameaça, disse: o que é que você falou?

Resolvi encarar.

— Heterossexual, gatinha!  E ainda desejo “feliz natal e tudo de bom” para os parentes e amigos do zap zap.

Quando vi que ela ia dar o bote (agora está na moda mulher virar onça) completei: também sou monogâmico, uso camisas Pólo e mocassim apache.

Bem, só para contabilizar: paladar gourmet, heterossexualidade, monogamia e parceria com os amigos de zap zap que igualmente desejavam “feliz natal e tudo de bom” no final do ano. Usei Tony Ramos e todo meu arsenal, e ainda incluí camisas Pólo e mocassim apache com requintes de sadismo e crueldade. E a chamei de “gatinha”.

Aos olhos da audiência que testemunhava a “performance”, e aos olhos da plateia de demônios que davam triplos tuístes carpados dentro da garota comedora de cocô, eu era — no mínimo — algo parecido com o inimigo número um dos artistas de rua, dos poetas de barzinho “gosta de poesia?”, dos vendedores de miçangas em geral e de todos os malucos, desde Woodstock, passando pela praça da República até chegar em São Tomé das Letras, inimigo de todos os bichos-grilos e hippies que um dia ficaram doidões sobre a face da terra. Inimigo número um dos santo daimer’s, e de todos os comedores de cocô e rastafáris também, para eles e para ela, eu era o cão chupando manga e consumindo Haagen-Dazs eternidade adentro.

Nesse ínterim, a garota começou a girar sobre si mesma e sobre o “material” que expurgava do corpo, ela arrancava tranças inteiras do seu rastafári, além de cravar as unhas no rosto e comer os pedregulhos que rolavam no seu entorno (junto com o cocô) — tudo ao mesmo tempo.

Aí o sangue esguichou, só então percebi que eu havia passado dos limites.

Alguém chamou o SUS, mas o padre chegou antes. Aquele ser gania, uivava como se tivesse uma alcateia de lobos famintos dentro de si e pedindo desforra. Não era mais uma pessoa, mas uma maçaroca de entranhas de algo que — antes de eu falar “heterossexual” — era apenas uma garota bonita que comia fezes em púbico. Não dava mais para saber o que era chorume e o que era gente. A coisa estava ficando esquisita, feia, medonha, sinistra, muito sinistra.

O padre veio em nossa direção, e iniciou o exorcismo.

Corta.

Lembro perfeitamente da chegada do padre, e das palavras dele: “vade retro século vinte, te ordeno que saia deste corpo, vade retro!”.

Depois apaguei, e acordei na Santa Casa de Misericórdia.  Ao meu lado a enfermeira, uma Deusa vindo diretamente de Ébano, segurava minha mão. Não larguei a mão dela até hoje. Casamos, e somos felizes para sempre. Sou ajudanta de palco nas performances da Joilson, ela é Drag nas folgas dos plantões da UTI. E eu, graças ao exorcismo recebido no Largo da Batata, sou uma mulher livre, curada e emancipada do século 20 for ever, evoé!

Nunca mais camisas Pólo, mocassim apache e grupos reacionários no zap zap, adeus monotonia, monogamia e sorvete da Haagen-Dazs, a Joilson é adepta do poliamor e do polimorfismo vertente de Saquarema e, no momento, transamos com Samantha, uma píton albina bi cadeirante linda e maravilhosa, nunca mais papai e mamãe, nunca mais filé a Chateaubriand. Xô, século 20!

A propósito, nossa agenda está cheíssima. Ontem mesmo fizemos uma performance na Lobo bombom, que é um buffet, morning club & escola especializada em crianças-trans-trans, filhas de mães-trans. Um novo conceito, o futuro. Um mix de Paulo Freire com Madonna como método de aprendizado e inclusão, acho que é isso. Um arraso!!!

A franquia do buffet nos convidou para uma sociedade artística, acho que vamos aceitar. Quer dizer, vai depender da Samantha, que ainda é um pouco reticente com relação à essas questões. Mas se as Deusas quiserem tudo vai se resolver numa assembleia que o MTST deve promover no Hotel Cambridge — na lua cheia da próxima sexta-feira 13, e que vai seguir até meia noite do outro dia.

Eu e a Joilson fomos convidadas para fazer uma performance na Saturnália do MTST!! Luxo total!

Adivinhem quem é a chefe, digo, a Anjo da Ocupação no Cambridge? As monas não vão acreditar!! Bafo do milênio!!!

Estamos falando de nada mais nada menos que a garota comedora de cocô do Largo da Batata, ninguém menos que a Deusa femen da Igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat, ela vai ser nossa hostess!! Vamos arrasar! Tapete vermelho pras divas for ever!!!!

Como diz Samantha, aliás, é o Mantra da Samantha “O mundo da voltas!” 

Beijuuuussss de Píton!!!!!!!!!