Não é por acaso que se diz que cada homem é um universo particular, com ideias próprias, vontades próprias, desejos impublicáveis, necessidades as mais íntimas, tantas expectativas acerca do que pode vir a ser a vida, não obstante saiba que pode jamais chegar a alcançá-las. Para o homo sapiens sapiens, o homem que sabe que sabe, a espécie mais curiosa encontrada sobre a Terra, é extremamente difícil submeter-se a regramentos contrários à sua formação contestatória, refutatória, indomável. Malgrado fundamental para a vida em sociedade, a fim de suportarmo-nos uns aos outros, enquadrar-se não tem quase nada de prazeroso. Como uma das faces mesmas da natureza, o homem apenas reflete essa natureza, do que resulta um todo indisciplinado, selvagem, caótico. Dessa imensurável ausência de ordem no processo evolutivo e, por conseguinte, no movimento civilizatório da humanidade advieram-lhe ônus e bônus. Sociedades passaram a ser obrigadas a lidar com a diversidade de opiniões, sob pena de degringolarem em tiranias abjetas — o que acabou ocorrendo em muitos casos —, ao passo que essa ânsia por se expressar, legítima, não raro tornou-se efetivamente um trampolim para abusos. É quimérico se pensar em liberdade de opinião e de expressão num país como o Brasil, pródigo de exemplos em que delinquentes travestidos de blogueiros e youtubers são tomados por paladinos da defesa do bom, do justo e do belo, enquanto jornalistas sérios são forçados a raspar suas economias a fim de se verem livres da cadeia, porque condenados em processos movidos, ironicamente, pela publicização de verdades que tocam, ainda que obliquamente, magistrados da mais alta corte da República — e frise-se que processos dessa magnitude terminam subindo a essa mesma egrégia corte, isto é, o suposto ofendido vem a ser o juiz da causa de que é uma das partes. Tudo isso, meus caros, acreditem se puderem, faz parte da nunca finda consolidação da democracia, um movimento repleto de altos e baixos e de idas e vindas, sobretudo numa nação de tempos em tempos sujeita a tentações autocráticas, cujo livramento da subjugação de ditadores é ainda recente diante do tempo histórico. Ninguém disse que seria fácil. E não está sendo.
A função do crítico é assaz parecida à do juiz. Eu, de minha parte, nunca reconheço que nunca poderia ganhar a vida inocentando e, o princípio, condenando pessoas, seja lá por que razão. Por outro lado, exercendo uma atividade cujo fundamento primeiro é, de certo modo, emitir juízos de valor sobre o trabalho de alguém, tento ser o mais imparcial possível, sabendo que neutralidade, a neutralidade como deve ser mesmo, passa longe de um ofício como este. Estou à mercê de minha visão de mundo, inarredavelmente cercado por meus preconceitos — todos, rigorosamente TODOS os temos, apesar de que só os bravos o admitam —, que domo com um esforço que só minha fustigada consciência sabe o quanto me custa, sou influenciado por minhas leituras e minha bagagem intelectual, o maior patrimônio de um homem. Escrever a exegese de uma obra de arte ou de um produto cultural, coisas que comunicam-se uma com a outra, mas nem sempre convergem para uma mesma matéria, demanda um equilíbrio insano, quiçá contranatural, dada a tendência ao pensamento figadal do infeliz do gênero humano, mormente diante de ideias que o grande Paulo Francis (1930-1997) definiria, com a acerbidade de sua pena inigualável, como escrotas — detesto empregar palavras de baixo calão num texto, mas a pornografia é, em muitas circunstâncias, a justa medida para respostas efetivas a respeito de temas que raspam na falta de discernimento, de decoro, de decência. Na desumanização e, por óbvio, na desumanidade.
Confesso que tenho pouquíssimo a dizer sobre o, vá lá, legado de Jeff Tremaine, o diretor de “Jackass 4.5”, a novíssima estreia da Netflix neste 20 de maio de 2022. Lembro-me de assistido a um dos filmes da franquia, num pré-histórico 1990 e qualquer coisa, depois de muita insistência de amigos que perderam-se na bruma do tempo, por farra, e não gostei nada, nada do que vi. A despeito de eu ter nascido já com o peso esmagador de, pelo menos, uns trezentos anos, desde o Iluminismo de Voltaire (torno a ele depois), rondar hoje pelos 330 anos, aparentar 310 a menos (para os que me abordam com terceiras intenções) e estar na iminência de inteirar os quarenta (não vejo a hora!), não achei a menor graça. Esse “Jackass” se estendia por horas a fio em brincadeiras escatológicas que envolviam urinar na neve, ajuntar aquela mixórdia numa mancheia, formar uma bola, como de sorvete, e oferecer a alguém, com a maior desfaçatez do mundo, como se fosse o último néctar dos deuses, a mais fina iguaria.
Evidentemente, quem aceitava degustá-la sabia muito bem o que estava a fazer; tudo não passava de um jogo de cartas marcadas, de uma farsa patética e mal ensaiada, de uma encenação grotesca, tal como os não menos tediosos combates de telecatch dos anos 1960. Tudo certo, adultos temos de viver como gostamos e podemos, nenhum trabalho honesto é motivo de ignomínia e o freguês sempre tem razão. Será mesmo?
O caso é que o público foi ficando mais e mais exigente e os episódios de “Jackass” passaram a resvalar em risco de vida e em certas ocasiões mesmo em crime. Numa das cenas desta versão “4.5”, com a inclusão de trechos retirados de edições anteriores também por atentarem contra o ordenamento jurídico dos Estados Unidos — a pátria da liberdade de expressão por excelência —, e eu não faço ideia do que Tremaine fez para conseguir trazê-los a público agora, o elenco participa de um tal balanço polonês, um corredor polonês composto por marmanjos se balançando. Parte dos integrantes, vestidos com fantasias esdrúxulas, desfilam diante dos que se balançam a toda velocidade até que, claro, são acertados. Eu não sei como aquilo não acabou em fratura exposta (e vai-se saber se não acabou mesmo), mas nada se compara ao grand finale, a simulação de voo sem piloto. Devo admitir que sangue frio, pelo menos, eles têm.
O sucesso de “Jackass 4.5” remonta precisamente à falta que o seriado tem feito àqueles que acompanharam a, digamos, saga de Knoxville et caterva ao longo de mais de uma década, sem mencionar o gosto muito particular de alguns em assistir ao circo pegando fogo, sem figura de linguagem. É impossível subestimar uma produção de orçamento irrisório que arrecada mais de oitenta milhões de dólares num único golpe, mas fico mesmo é com Voltaire. Que cada um tenha o direito de ser como quiser, desde que eu precise gostar. Há os que acham coisas como “Jackass 4.5” o máximo da liberdade de expressão, argumento com o qual não posso concordar. E ninguém precisa matar ou morrer por isso.
Filme: Jackass 4.5
Direção: Jeff Tremaine
Ano: 2022
Gênero: Comédia
Nota: 6/10