William Faulkner morreu em julho de 1962. Ele tinha 64 anos e, em termos literários, parecia tão esgotado quanto Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Em 1954, esteve no Brasil, quase sempre bêbado. Certo dia, segundo uma das versões, teria perguntado: “O que estou fazendo em Chicago?” A história de sua visita ao Brasil, quatro anos depois de ter recebido o Nobel de Literatura, é contada, de modo romanceado, no livro “Dias de Faulkner (Imprensa Oficial), de Antônio Dutra. Ao ser apresentado à escritora Lygia Fagundes Telles, que morreu em abril de 2022, apontada como “contista”, teria dito: “Se os seus contos forem tão bonitos quanto os seus olhos, a senhora certamente é uma grande escritora”. A autora do belo romance “As Meninas” disse que levou o criador de “Enquanto Agonizo” para ver cobras no Instituto Butantã. “Segurava as cobras e gritava: ‘Sou um fazendeiro, um fazendeiro’. Ele chegou meio fora de órbita a São Paulo. Queria ver cobras e o Cruzeiro do Sul. Um dia, pegou-me pelo braço e apontou para o céu, querendo ver as estrelas. Ficou doido com essa história de Cruzeiro do Sul. E estava sempre com o cabelo molhado. Creio que se molhava para ficar desperto, devido ao excesso de álcool. Não era um homem bonito. Era baixo, mas tinha um rosto muito forte”, contou Lygia à “Folha de S. Paulo”. Queria, mas não conseguiu visitar uma fazenda de café e Mato Grosso.
O brasileiro Raduan Nassar, autor de “Lavoura Arcaica” e “Um Copo de Cólera”, lembra, não vagamente, Liev Tolstói e Faulkner. Tolstói, anarquista cristão, tentou viver de acordo com suas pregações, mas, nobre e rico, jamais o conseguiu integralmente. Tentou educar a plebe, escreveu até cartilha para os filhos dos mujiques, mas acabou desistindo de tudo, e, com mais de 80 anos, fugiu de casa, morrendo numa estação de trem — célebre como, mais tarde, Gandhi, uma espécie de tolstoiano (que deu certo) da Índia. Faulkner era um escritor notável, mistura de James Joyce e Guimarães Rosa, mas passou a vida sugerindo que era apenas um fazendeiro do Mississippi. Na verdade, embora não fosse um scholar, era um homem culto, leitor frequente da Bíblia e de outro William, o britânico Shakespeare. Quando saía para passear, diz sua biógrafa Monique Nathan, levava alguma obra do bardo inglês no bolso do casaco. Raduan escreveu uma obra pequena e refugiou-se numa fazenda, em São Paulo, tornando-se um próspero produtor rural — e não apenas um criador de galinhas, como divulgaram alguns jornais. Quando se aproximava dos 80 anos, doou a fazenda para uma universidade pública, dividiu parte dos bens com seus funcionários e mudou-se para uma fazenda menor, a Retiro Feliz. Meio faulkneriano. Meio tolstoiano.
Nem todos os romances de Faulkner são de alta qualidade, mas “O Som e a Fúria”, “Enquanto Agonizo” (o preferido de Harold Bloom), “Luz em Agosto” e “Absalão, Absalão” merecem figurar em qualquer lista de melhores livros de todos os tempos. Mesmo romances menores, como “Os Invictos” (delicioso), a trilogia Snopes (“A Aldeia”, “A Cidade” e “A Mansão”; a energia narrativa faulkneriana, a maldição sulista, às vezes aparece nesses romances crepusculares) e “Sartoris” (a história fragmentária de um dos mais poderosos personagens do escritor, o coronel John Sartoris — inspirado em seu bisavô William C. Falkner, sem “u” — que migra de um livro para outro, como de “Sartoris” para “Os Invencidos”) superam, de longe, a literatura beat — a que fez mais dieta de qualidade nos Estados Unidos. Não são, evidentemente, obras escritas por um fazendeiro… comum.
Em 1922, Faulkner foi demitido porque não parava de ler em serviço. Em 1924, com a intenção de se tornar jornalista, migrou para Nova Orleans, deixando sua amada Oxford, e recebeu dicas literárias de Sherwood Anderson. Na revista “The Double-Dealer”, indicado por Anderson, publicou artigos e poemas. Em 1925, de volta a Oxford, trabalha para publicar a edição de seus livros. Em 1929, aos 32 anos, publica “Sartoris”, que dá origem ao ciclo de Yoknapatawpha (a região inventada pelo escritor), e seu romance mais refinado, “O Som e a Fúria”. Um ano depois, lança “Enquanto Agonizo”. Apesar da importância posterior de “O Som e a Fúria”, que o tornou o Joyce americano, só fez sucesso com “Santuário”, em 1931. Com “Luz em Agosto”, em 1932, e com “Absalão, Absalão”, em 1936, praticamente concluiu sua obra mais importante. Depois, lançou “Os Invencíveis”, em 1938, “Palmeiras Selvagens”, em 1939, e “A Aldeia”, em 1940.
O livro “Os Escritores — As Históricas Entrevistas da Paris Review” (Companhias das Letras) exibe um Faulkner às vezes surpreendentes e às vezes nem tanto. “Sou um poeta fracassado. Talvez, primeiro, todo romancista queira escrever poesia, descobre então que não consegue e tenta o conto, que é a forma mais exigente depois da poesia. E, fracassando nisso, só aí começa a escrever romances.” Verdade. Talvez não, mas a formulação é no mínimo curiosa.
Jean Stein pergunta se há uma fórmula para se tornar um bom romancista. Faulkner: “Noventa e nove por cento de talento… noventa e nove por cento de disciplina… noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. Um artista é uma criatura arrastada por demônios. (…) É totalmente amoral. (…) A única responsabilidade do escritor é para com sua arte. (…) Se um escritor tiver que roubar a sua mãe, não hesitará; a ‘Ode a uma urna grega’ [de John Keats, 1795-1821] vale mais do que qualquer punhado de velhas”.
Faulkner cutuca aqueles que dizem não publicar grandes obras porque não têm tempo, ou porque precisam trabalhar para sobreviver: “O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é lápis e papel. Eu nunca soube que algo bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. (…) Nada pode prejudicar a literatura de um homem se ele for um escritor de primeira classe”.
A relação escritor-leitor não interessa a Faulkner: “Não tenho tempo de pensar em quem está lendo minha obra”. De repente, corta: “Se eu reencarnasse, gostaria de voltar como um urubu. Ninguém o odeia ou inveja nem o quer ou precisa dele. Ele nunca se vê importunado ou em perigo, e pode comer qualquer coisa”.
Embora seja filho de Édouard Dujardin e Joyce, com ou sem monólogo interior ou fluxo de consciência, Faulkner diz que “um escritor seria um louco se seguisse uma teoria. Deve aprender com seus próprios erros; as pessoas só aprendem errando. O bom artista acredita que ninguém é bom o bastante para lhe dar conselhos”.
“O Som e a Fúria” foi o livro que “mais dor e angústia” causou a Faulkner. “É o livro pelo qual sinto mais carinho. Não pude abandoná-lo, e nunca consegui contar a história direito, embora tentasse ao máximo, e gostaria de tentar de novo, embora provavelmente fracassasse ainda outra vez.”
O entrevistador pergunta: “Quanto de sua literatura é baseada na experiência pessoal?” Faulkner responde, possivelmente meio irônico: “Não sei dizer. Nunca fiz as contas. (…) Um escritor precisa de três coisas, experiência, observação e imaginação, sendo que duas dessas, às vezes até mesmo uma, podem suprir a falta das outras. Comigo, uma história geralmente começa com uma ideia ou memória ou imagem mental. Escrever a história é apenas uma questão de ir construindo esse momento, de explicar por que aconteceu ou o que provocou a seguir”.
Inquirido sobre inspiração, Faulkner antecipa João Cabral de Melo Neto: “Não sei nada a respeito de inspiração, porque não sei o que é — ouvi falar a respeito dela, mas nunca a vi”.
Há quem diga que Faulkner tinha certa inveja de James Joyce, dado seu suposto maior alcance literário, sobretudo fama, apesar de não ter recebido o Nobel de Literatura. “Os dois grandes homens do meu tempo eram [Thomas] Mann e Joyce. Deveríamos nos aproximar do ‘Ulysses’, de Joyce, como o pregador batista analfabeto se aproxima do Antigo Testamento: com fé”, disse Faulkner. Inveja? Nem tanto. Ele elogia seu padrinho literário, Sherwood Anderson, Theodore Dreiser e Mark Twain. “Os livros que leio são aqueles que conheci e amei quando era moço e aos quais volto como se volta aos velhos amigos: o Antigo Testamento, Dickens, Conrad, Cervantes — ‘Dom Quixote’. Leio-os todos os anos, como alguns leem a Bíblia. Flaubert, Balzac — ele criou um mundo intacto, próprio, uma corrente sanguínea que flui através de vinte livros —, Dostoiévski, Tolstói, Shakespeare. Leio Melville ocasionalmente, e dos poetas Marlowe, Campion, Jonson, Herrick, Donne, Keats e Shelley. Ainda leio Housman. Já li esses livros tantas vezes que nem sempre começo na primeira página ou leio até o fim. Leio apenas uma cena, ou o tocante a uma personagem, assim como você se encontra e conversa com um amigo por alguns minutos. (…) Leio Simenon porque me lembra alguma coisa de Tchekhov.”
Personagens preferidos de Faulkner: Sarah Gamp, sra. Harris, Falstaff, Prince Hal, dom Quixote, Sancho Pança, Lady Macbeth, Bottom, Ofélia, Mercúcio, Huck Finn, Jim, Sut Lovingood (personagem de um livro de George Harris). “Nunca gostei muito de Tom Sawyer — um tremendo pedante.”
Sobre os críticos: “O artista não tem tempo para escutar os críticos. Aqueles que querem ser escritores leem as resenhas, aqueles que querem escrever não têm tempo de ler resenhas. O crítico também está tentando dizer: ‘Joãozinho esteve aqui’. Sua função não se dirige ao próprio artista. O artista está um degrau acima do crítico, pois está escrevendo alguma coisa que porá o crítico em movimento. O crítico está escrevendo alguma coisa que porá todo o mundo em movimento, menos o artista”.
Sobre Freud, Faulkner disse, em tom jocoso: “Todo mundo falava de Freud quando eu vivia em Nova Orleans, mas nunca o li. Nem Shakespeare o leu. Duvido que Melville o tenha lido, e tenho certeza de que Moby Dick não o fez”.
Jean Stein diz que algumas pessoas leram seus livros três vezes e não entenderam. Faulkner recomenda: “Que leiam quatro vezes”.