A alienação é a chave da felicidade Dreamstime

A alienação é a chave da felicidade

Quando criança, eu pensava que a Tia Chata — uma dentre milhares de minhas tias-avós — tinha recebido essa curiosa alcunha porque fosse uma pessoa enfadonha, maçante. Era uma velhinha tão fofa, tão adorável quanto a minha mãe nos dias de hoje. Aliás, foi mamãe quem me explicou que tia Gerusaleta — este era o seu nome de batismo — tinha recebido o apelido por causa dos delicados predicados físicos, ou seja, era uma mulher franzina, miudinha, uma graça mesmo, aquele tipo de chaveirinho-de-gente que se quer levar a tiracolo.

Não me esqueço dos cafunés no seu colo e das reiteradas recomendações para ler livros. Ela tinha sido professora no serviço público, possuía uma caligrafia perfeita e era detentora de uma cultura acima da média. Demorei demasiadamente até compreender e seguir os conselhos da tia velha. De fato, perdi um precioso tempo e, tempo, vocês sabem, por mais que a gente queira, não tem volta. Eu tinha muita preguiça de ler, mas, água mole em pedra dura… Nalguma fase da minha meninice, comecei a devorar livros que constavam fora das listas oficiais da chamada leitura pedagógica obrigatória que a maioria dos alunos simplesmente odiava.

Tia Chata dizia que crianças que liam muito se comunicavam com mais propriedade, incrementavam o vocabulário, escreviam redações melhor do que nunca, além de serem admiradas pelos adultos e pelos demais colegas de sala. Foi justamente nessa época de descobrimento dos livros que desandei a escrever. Comecei imitando Monteiro Lobato. Considero este um início promissor. Daí, então, não parei mais. De escrever. De imitar, eu já parei. Eu acho. Espero.

Outra dica preciosa que recebi da velhota querida, já na fase de adolescência, foi me atualizar, ficar informado a respeito do que estava rolando no Brasil e no resto mundo, por meio dos jornais e dos noticiários da TV. “Gente alienada não tá com nada”, ela repetia o mantra.

Acho o mundo uma bela porcaria. Não me refiro à chuva, aos rios, aos cânions e aos passarinhos. Falo de gente. Não há como negar, contudo, que a vida no planeta se torna mais suave, quando temos o privilégio de conviver e de aprender coisas boas com pessoas que têm a leveza, a elegância e a generosidade que tinha, por exemplo, a minha saudosa tia professora. Se ela ainda estivesse por aí, pediria que coasse aquele cafezinho sem açúcar, no antiquado coador de feltro do bule esmaltado, e, enquanto isso, lhe perguntaria como é que se faz para se manter informado, sem se revoltar, sem se deprimir, sem sentir repulsa por determinadas pessoas, frente a tantas notícias ruins que a comunicação globalizada, instantânea, proporciona.

Ultimamente, em particular, ando taciturno feito um urutau ao presenciar as cenas de guerra e de devastação na Ucrânia, engendradas pelos selvagens de Vladimir Putin. Devo estar sofrendo de algum excesso de empatia, ao me esvaziar por dentro, tipo um saco de sementes furado por baixo. Valendo-me da criatividade desenvolvida desde os primórdios como escritor, fiz mais um exercício de reflexão para tentar me colocar no papel de um cidadão ucraniano fustigado pelos horrores de uma guerra impensável em pleno século 21.

Imaginei o meu país invadido. Imaginei ter sido orientado pelas autoridades oficiais do Estado a não ter medo, a defender a pátria contra os invasores, a reforçar o suprimentos domésticos de alimentos e a não fugir do país — uma vez que era um homem de meia-idade, saudável, em condições físicas ainda adequadas para empunhar uma arma e matar inimigos —; contudo, com celeridade, deveria encaminhar mulher, filhos e parentes idosos para a evasão imediata por meio dos desumanos corredores humanitários, engrossando as longas filas de refugiados que migravam à força para os países vizinhos. Imaginei ter sido dispensado do trabalho pelos meus superiores, com a recomendação de permanecer em casa, teoricamente, o local mais seguro, pois, os bombardeios já estavam atingindo as imediações da cidade.

Imaginei sair para comprar cigarros e me deparar as ruas tomadas por destroços prediais, por carros retorcidos e por nacos de carne humana dilacerada por bombas e por estilhaços. Imaginei retornar para casa, encontrar o prédio em ruínas e o cachorro morto na varanda. Imaginei uma vida sem água encanada, sem sinal de internet, sem sinais de civilidade, sem abraços calorosos, sem lágrimas compartilhadas e sem energia elétrica. Imaginei fugir para lugar nenhum, sem dinheiro no bolso, sem os remédios da asma, com uma mochila nas costas contendo apenas o básico para subsistir por alguns dias. Imaginei a cidade em que fui criado irreconhecível, arruinada por uma guerra que, absolutamente, nem de longe, era minha.

Imaginei mais uma saraivada de situações dantescas, antes inimagináveis. Peguei o controle remoto. Desliguei a TV. Tomei outro gole. Traguei o Jeronimo’s. Estava extenuado de sofrer por osmose. Não queria mais pensar em nada que não fosse a minha pacata, ordinária e confortável vida de brasileiro da classe média. Tia Chata não era tão sagaz quanto eu supunha. A comunicação estava me enlouquecendo. Descobri, com o tempo, com a dor e com o desamor de outrem, que a alienação era a chave da felicidade. Ou não. Muitas vezes, não se tinha escolha. Dependia de que lado da história a gente se encontrava, nessa tresloucada, misteriosa, infame e insensata saga humana de bondades e de carnificinas no Planeta Terra.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.