Quando Jane Austen (1775-1817) escreveu “Razão e Sensibilidade”, ainda faltava muito para que a autora, pouco mais que uma menina, se definisse como uma romancista de fato. Aos vinte anos, Austen não conhecia quase nada da sociedade de seu tempo, perdida entre o desejo de se tornar verdadeiramente moderna, mas presa de modo indelével a tradições e costumes os mais obsoletos. Em 1795, mulheres sabiam pouco mais do que se passava entre a cozinha e a sala da casa onde, entre as de origem aristocrática, cabia educar fieiras e fieiras de crianças, dar ordens aos empregados, bordar toalhas e remendar cueiros, tomar chá com as amigas de quando em quando — às plebeias de pai e mãe, fora as obrigações maternais, nem isso. Mais de década e meia depois, em 1811, a Inglaterra experimentava seu período de maior prosperidade econômica, graças à consolidação da atividade fabril ao longo da Revolução Industrial, mas a condição feminina permanecia estagnada não no século 18, mas no medievo, à exceção, mais uma vez, quanto às mais pobres, agora integrando maciçamente a classe trabalhadora, uma horda de operários que se esfalfava em máquinas a vapor em fabricas de tecidos e usinas de beneficiamento de carvão mineral por mais de dezesseis horas consecutivas todos os dias. A romancista, contudo, já se sentia madura o bastante para, aos 36 anos, apresentar-se como uma legítima representante de seu ofício.
Transposto para o cinema em 1995, o enredo de “Razão e Sensibilidade” não foge a retratar com tintas as mais verossímeis a natureza vulnerável da mulher, sempre a reboque das decisões masculinas, sempre esperando que homens lhes dissessem como se portar, o que vestir, que assuntos deveriam ser evitados e qual era seu papel, junto à comunidade e no seio doméstico. No filme do taiwanês Ang Lee, como no texto de Austen, uma mãe e suas três filhas permanecem quase prostradas ao passo que os homens que as rodeiam se evadem para Londres, a fim de cuidar das próprias vidas. Fosse a escritora um pouco mais clarividente, concluiria que seria necessário fazer suas personagens exigirem alguma satisfação, que não haveria sentido em reproduzir esse padrão, ainda que apenas reportando o cotidiano de sua época. É um exercício de tolerância e aprimoramento intelectual acompanhar uma história que se desenrola sobre o nada, isto é, sobre as digressões e fantasias de quatro mulheres completamente perdidas, sem interesses que extrapolem as fronteiras do lar. Essa aura de mistério comezinho, que inspira sentimentos tão contraditórios entre si como misericórdia e ira, se prolonga no decorrer da trama graças ao que precisava ser dito e nunca o é, leia-se dito por mulheres indignadas a homens negligentes. Elas se sabiam ultrajadas, se reconheciam preteridas, e mesmo assim, conservavam-se dóceis, sôfregas por uma migalha de atenção. “Razão e Sensibilidade” talvez tenha sido o livro que primeiro se atreveu a explorar e mesmo denunciar esse abastardamento do sentimento amoroso, solidamente fundado no argumento da dependência financeira, a partir da qual as relações se estabelecem e geram vantagens de parte a parte, até que se corrompem. Isso era mais evidente e mais corriqueiro entre o fim do século 18 e o princípio do 19, mas seguiu acontecendo no decorrer da história da humanidade, cuja essência é e sempre será a mesma a despeito do avançar das eras.
A trama tem início com a morte do patriarca dos Dashwood, vivido por Tom Wilkinson, que repassa para o filho do primeiro casamento, conforme manda a lei inglesa, a propriedade em que mora com a segunda esposa, interpretada por Gemma Jones, e as filhas, Elinor, personagem de Emma Thompson; Marianne, de Kate Winslet; e Margaret, de Myriam François-Cerrah. A fim de não passarem necessidade até que morram na miséria, são pagas quinhentas libras, o mínimo exigido, e as quatro se veem forçadas a se mudar da herdade luxuosa do campo para uma choupana nos arredores da cidade, gentilmente cedida por um parente distante. Se antes as moças já precisavam começar a pensar em arranjar marido, agora o matrimônio não parece uma contingência, mas à medida que o roteiro, adaptado por Thompson, se desdobra, surgem dificuldades de algum vulto. Elinor, a mais velha, já não está mais na flor da idade; e Margaret, a mais nova, é pouco mais que uma criança. Quanto a Marianne, tão sentimental quanto exigente — o sal da história —, os pretendentes que lhe aparecem não são de todo ruins, o que significa que também não são exatamente apropriados. A começar por Edward, um bom desempenho de Hugh Grant como o cunhado do meio-irmão do trio de protagonistas. Edward não se interessa pela filha do meio, mas por Elinor, e os dois quase engatam um apaixonado namoro, não fosse um segredo de polichinelo que o aprisiona e os condena à separação.
Esse primeiro conflito dá azo a todas as outras complicações dramáticas do longa, que se repetem, com alterações pontuais, entre as irmãs mais velhas. Margaret se presta ao respiro cômico suave de uma narrativa já bastante leve, tão leve que nem se faz sentir em dadas passagens. A direção de Ang Lee é competente o bastante para valorizar o que há de genuinamente primoroso em “Razão e Sensibilidade”, e esse é um dos grandes predicados do filme, divertido, mas muito inferior às outras duas produções que integram a trilogia, “Persuasão” (1995), dirigido por Roger Michell, e “Orgulho e Preconceito” (2005), levado à tela por Joe Wright.
Filme: Razão e Sensibilidade
Direção: Ang Lee
Ano: 1995
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10