Mais poderoso que o espectro da morte só o espectro da proximidade da morte. Não é fácil se dizer o que se faria diante da iminência certa da indesejada das gentes, na definição tão simples quão certeira do pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968) em “Consoada”, poema publicado em “Poesia Opus 10” (1952), pela Martins Fontes. Padecendo de uma tuberculose renitente desde tenra idade, Bandeira se acostumou a lidar com a finitude iminente desde logo, o que não lhe foi de todo ruim: a possibilidade de que tudo se desvanecesse de uma hora para a outra, talvez ao cabo de uma agonia muito mais insuportável para quem o rodeava do que para si mesmo, pautou não só sua vida, mas principalmente sua obra. Felizmente, esses tipos aparentemente ternos, mas duros na essência, são dotados de astúcia invulgar, que os faz capazes de dar nó em pingo d’água. Pagando as frequentes complicações de saúde com poemas que aludiam a assuntos igualmente lúgubres como a solidão, o pessimismo, a falta de fé e a morte, mas também aos solares, a exemplo do erotismo e, claro, do amor, Manuel Bandeira foi driblando a morte e chegou aos 82 anos — e ninguém vive por tanto tempo impunemente.
A morte é esquadrinhada de uma forma um pouco menos rigorosa por Wayne Roberts. Em “Adeus, Professor” (2018), Roberts tece especulações acerca de como um homem comum, mas flagrantemente pouco afeto a valorizar opiniões, se comporta diante do último diagnóstico, de uma medicina muito mais precisa que a do tempo de Bandeira, segundo o qual um câncer de pulmão já bastante avançado o lança no colo da iniludível. A partir desse momento, o filme se presta a um diário, registrando de que maneira o professor universitário Richard Brown reage aos estímulos que se sobrepõem uns aos outros e o advertem sobre a necessidade de se aproveitar o dia, de hoje, tanto mais para alguém na sua delicada condição. E Richard vai fundo na recomendação de outro poeta, o grego Homero (928 a.C-898 a.C.). Ninguém consegue entender o que ele pretende ao abandonar a cátedra no meio do semestre, fazendo aparições escandalosas e cada vez mais frequentes no câmpus, não a fim de se explicar, mas para integrar o grupo de alunos que não vê problema em fumar maconha diante dos outros alunos e professores. O comportamento do protagonista também resvala na promiscuidade sexual, claro, e levar para cama uma mulher que acabou de conhecer, ainda que não esteja assim tão entusiasmado, não é uma questão — se é que alguma vez o fora.
Richard não poderia viver na pele de melhor intérprete que Johnny Depp. Vivendo um inferno muito mais que meramente astral, o eterno Jack Sparrow de “Piratas do Caribe” — cancelado para sempre da franquia, de acordo com todos os tabloides de fofoca, ainda que tente sair por cima e brade a plenos pulmões que jamais voltaria à cena como o personagem que fez reviver o gênero, por dinheiro algum —, Depp está muito bem em “Adeus, Professor”. O roteiro de Roberts sabe aproveitar essa verve marginal do ator. Incorporado pelo espírito de destruição que o devassa, por mais leve que o enredo pareça, Depp fornece a Richard o arcabouço dramático necessário quanto a tornar verossímeis seus acessos de raiva, momento em que resmunga alto e grita palavras de baixo calão. Mais do que esteticamente impactante, a sequência em que Richard entra num lago um tanto suspeito, vestido, e caminha continuamente, sem olhar para trás, deixando claro seu desprezo por quem quer que seja e talvez desejando mesmo ser alvo da ojeriza e da pena alheias, nessa ordem, é um retrato cirúrgico do que faz a mera insinuação da morte num espírito imaturo, perturbado. Típico mau perdedor, para defini-lo vem a calhar fazer menção a outro Manuel, também poeta. Resta evidente que o personagem de Depp não soube viver e, ao que tudo indica, não saberá se despedir da vida de modo minimamente digno, como escreve o português Manuel Bocage (1765-1805), morto aos quarenta anos, a pena silenciada por um aneurisma que lhe consumiu os três últimos anos de uma vida mais atribulada que feliz. Como se vê, há maneiras e maneiras de se viver e se morrer.
Justiça se lhe faça: Richard tenta uma improvável regeneração ao tentar botar em pratos limpos a relação com Veronica, a ex-mulher interpretada por Rosemarie DeWitt, que abandonara, aproveitando o movimento para também dirigir suas desculpas à filha, Taylor, de Kaitlyn Bernard. Malgrado o bom desempenho de DeWitt e Bernard, nem o texto nem a condução de Roberts fogem de soluções pateticamente fáceis, baseadas na surrada estratégia de dar um verniz meio angelical a um alguém que se sabe morrendo e tenta às raias do desespero tomar uma atitude que mais arrefeça sua culpa que repare seus deslizes, agonia tanto maior porque, no fundo, sente que esse esforço é baldado. Nem os clichês açucarados que se referem à vida como uma sucessão de momentos nefastos, permeados aqui e ali de passagens de júbilo, fazem efeito, graças ao jeito desonesto como o diretor passa a encarar seu protagonista.
Ninguém é leviano a ponto de questionar o potencial dramático de Johnny Depp, fortemente consolidado a partir de “Gilbert Grape — Aprendiz de Sonhador” (1993), levado à tela pelo sueco Lasse Hallström. Entretanto, há que se reconhecer que o peso de questões pessoais tem extravasado para sua carreira, e também esse descasamento se mostra ruidoso e ruinoso — e a direção pouco diligente de Wayne Roberts não o socorre em nada. Todos torcemos, Gilbert Grape, Jack Sparrow e uma geração formada por filmes tão díspares entre si e tão emblemáticos, para que Depp volte de corpo e alma. Com trabalhos como “Adeus, Professor”, não se tem dele nem um nem a outra.
Filme: Adeus, Professor
Direção: Wayne Roberts
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 7/10