Meus prediletos, filmes de guerra trazem em seu bojo algumas metáforas, e mesmo entre eles, existem os que engrandecem valores individuais como honra, coragem e autossacrifício, enquanto outros se debruçam sobre o caráter global por trás de seus combatentes e preconizam a glória, os louros, o reconhecimento público. A despeito de que vertente se observe, produções desse jaez resvalam na História em, arrisco, 90% dos casos, afinal falar de guerras que nunca ocorreram é um tema muito mais afeto à ficção científica, que pode acrescentar-lhe zumbis, invasores intergalácticos, criaturas multicelulares que parasitam corpos humanos e por aí afora. Confesso que, às vezes, queimo a língua e me flagro boquiaberto como eu mesmo nunca poderia imaginar diante de filmes dessa segunda categoria, os confessadamente ilusórios; contudo, meu prazer se multiplica em progressão geométrica ao experimentar assistir a um longa que retrata aspectos de batalhas campais e, claro, seus bastidores, não só absolutamente desconhecidos como tão inverossímeis que, ou saídos da cabeça de um roteirista com sérios problemas psiquiátricos, ou escritos pela vida ela mesma, que nunca foi muito chegada a lógica. É este o caso de “O Soldado que Não Existiu”.
Lançado no Reino Unido em 15 de abril de 2022, o filme de John Madden é a descrição minuciosa de um ousado plano de contraespionagem até então obscuro na história da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e fundamental quanto a pavimentar o caminho da vitória dos Aliados na Europa. Provavelmente, a única infelicidade no trabalho de Madden se refira à escolha do título, de inspiração entre indecorosa, mórbida e escatológica; no mais, trata-se de iguaria para paladares finíssimos, servida por um elenco com melhor da arte dramática inglesa — e isso por si já é algo superlativo — e que ainda tem o condão de valorizar a aura factual dos eventos apresentados por meio da condução de melodrama que, tal como receitas particularmente difíceis, demandam olhar treinado para vingar.
Contando com bem-pensadas invencionices, a exemplo de incluir um Ian Fleming (1908-1964) ainda anônimo, burocrata de terceiro escalão que auxiliava o almirante John Godfrey, de Jason Isaacs, chefe da Inteligência Naval Britânica que serviu de inspiração para ninguém menos que M, o mandachuva do MI5, o serviço secreto britânico, na série de romances protagonizados por James Bond, “O Soldado que Não Existiu” se supera ao sempre conseguir dar um jeito de fazer com que o enredo não sucumba ao tédio pelos motivos errados, ou seja, a profusão de elementos que remetem à apreciação dos acontecimentos. Neste núcleo se estabelece a pessoa de Fleming, incorporado por um irretocável Johnny Flynn, como o narrador da trama, com direito às pouco originais sequências em que um aspirante e escritor datilografa páginas e páginas da narrativa a que pretende dar corpo, mas aqui inegavelmente estimulantes. É como se o público tivesse tomado assento na fila do gargarejo de um teatro em cujo palco se desenrola apenas um dos maiores lances da história moderna da humanidade — e o melhor, inédita, guardada para ser conhecida por poucos felizardos.
Essa brincadeira promíscua e delirante entre o real que parece inventado e a história que soa como farsa tem seu único ponto de contato com a fantasia justamente, como não poderia deixar de ser, no personagem de Flynn. O diretor sustenta a hipótese de que teria sido Fleming, um dos autores mais criativos de toros os tempos, a desenvolver o plano, posto na rua em 1943 por Ewen Montagu (1901-1985), interpretado pelo brilho contumaz de Colin Firth, e Charles Cholmondeley (1883-1968), de Matthew Macfadyen, oficiais da Inteligência Naval inglesa. Urgia que a Grã-Bretanha achasse uma solução para o avanço de Hitler na Europa, e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965), desempenho adequadamente seco de Simon Russell Beale, havia determinado que a Sicília era o flanco ideal para o contra-ataque. Temendo, porém, que os alemães já adivinhassem a medida, era necessário fazê-los pensar em outras possibilidades. A operação, batizada de Mincemeat (“carne moída”, em tradução livre), teria de fazer uso de documentos intencionalmente plantados, simulando uma invasão pela Grécia. A prova da suposta ocupação seria um cadáver que apareceria no Golfo de Cádiz, na fronteira entre a Espanha e Portugal, posto em que “informações confidenciais” seriam barradas por arapongas nazistas. De tão absurda, essa subtrama do conflito mais intrincado e sangrento da trajetória do gênero humano já havia virado filme, em 1956, pelas mãos de Ronald Neame (1911-2010). Baseado no livro homônimo de Montagu, “O Homem Que Nunca Existiu” foi, como em 2022, um daqueles momentos difíceis de se explicar na história do cinema.
O roteiro de Michelle Ashford, adaptado do trabalho do historiador Ben Macintyre, expõe a apreensão dos militares envolvidos na operação e, mais uma vez, o que acontece por trás do que os figurões de Churchill deixam ver. Montagu surge em “O Soldado que Não Existiu” como um homem em busca de novos propósitos na vida. Advogado conhecido no Old Bailey, o Tribunal de Justiça de Londres, o personagem de Firth é homenageado com um jantar, a princípio em agradecimento pelos serviços prestados. Sua aposentadoria já fira sacramentada, meio a contragosto, e a ocasião servirá também para que se despeça de Iris, a esposa judia interpretada por Hattie Morahan, e dos filhos, despachados para os Estados Unidos devido à iminência do ingresso das tropas germânicas na Inglaterra. A vida de Montagu nunca mais será a mesma; com o casamento já estremecido por causa da sobrecarga de trabalho, o afastamento da mulher acaba fortalecendo seu vínculo com Jean Leslie, de Kelly Macdonald, um dos quadros mais eficientes do MI5. Tentando se esquivar do cerco do irmão, Ivor, de Mark Gatiss, Montagu conhece Cholmondeley, com quem apara as últimas arestas da proposta, em cuja aprovação nunca acreditaram plenamente. Visionário como poucos políticos ainda hoje, Churchill aquiesce; destarte, os oficiais usam o cadáver de um suicida, morto por envenenamento, e lhe atribuem uma nova vida depois de morto. Glyndwr Michael se torna o major William Martin, mensageiro naval, supostamente abatido no Mediterrâneo enquanto conduzia cadetes em formação. Uma reviravolta algum tempo depois, graças à entrada em cena de Salvador Gomez-Beere, o legista zeloso de seu ofício e incorruptível de Will Keen, quase põe tudo a perder, mas outra guinada faz com que o plano se encaminhe como o esperado, até o desfecho que todos, em algum grau, conhecemos.
Desfila ao longo da história uma pletora de outras atuações excelentes, como a da veterana Penelope Wilton no papel da secretária Hester Leggett, uma das mais longevas funcionárias do MI5, provavelmente o mais próximo de uma visão leiga sobre assunto tão específico. Colateralmente, são apresentados alguns dos severos dilemas que pautaram a execução de uma das mais arrojadas operações militares da história, como a conveniência ou não do envio de cem mil homens para os enfrentamentos na Sicília, ousadia que poderia custar caro demais aos Aliados. Aproximando-se o fim da história, o capitão David Ainsworth, de Nicholas Rowe, agente da Inglaterra atuando em território espanhol, mostra que os fins, definitivamente, não justificam os meios, contrariando a máxima do pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) e se prestando a um pálido contraponto moral numa trama essencialmente pragmática. Pragmática demais.
Filme: O Soldado que Não Existiu
Direção: John Madden
Ano: 2022
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 9/10